— Vai lá, prende o Daniel Silveira de novo! Ele descumpriu suas ordens. Ele te desrespeitou — disse aquele que atende por vários nomes, entre eles o de Acusador.
— Nah. Seria exagero até para alguém como eu. O coitado teve que ir ao hospital…
— Teve mesmo? Tem certeza?
— Não tenho. Mas o certo seria primeiro ter essa certeza e depois prender novamente alguém que já passou mais tempo do que devia preso. Isto é, se é que ele descumpriu as medidas cautelares — argumentou o que restava de humano no juiz.
— Medidas cautelares nas quais, diga-se de passagem, você foi muito frouxo.
— Frouxo? Eu mantive o sujeito preso para além do tempo devido e ainda impus, por sua influência, uma série de medidas que vão muito além do razoável.
— Razoabilidade é sinal de fraqueza. Lembre-se: você manda e, se quiser ter o poder sobre esse pedaço do mundo, tem que deixar isso muito claro para o zé-povinho.
— Eu sei, mestre. Mas o Daniel Silveira…
— Não se refira a ele pelo nome! Lembre-se: trata de um paciente, de um criminoso, de um condenado, de um extremista, de um golpista, de um animal imundo e antidemocrático. Qualquer coisa, menos um ser humano com nome e sobrenome.
— Tá bom, tá bom. O bolsonarista (que tal?) estava com uma crise renal. Rimou! Parece que estava até urinando sangue.
— Não interessa! Ele tem que estar em casa depois das 22h. Você mesmo determinou isso. E quem é que manda: você ou as pedras no rim? Você ou as dores excruciantes do sujeito? Ou vai me dizer agora que você está com peninha dele?
— Dito assim… — O juiz ficou ali, acariciando o couro cabeludo, antes de mais uma vez tentar convencer o Coisa-ruim de que a maldade, até a maldade alexandrina, tem limite. Desta vez, ele tentou apelar para a vaidade: — Mas vão dizer que estou sendo cruel e desumano. Vão me chamar de psicopata e de ditador!
— E desde quando você se importa com isso? Você tem o meu apreço. No mais, isso é fácil de resolver. Te chamaram de cruel e desumano? Seja cruel e desumano. Te chamaram de psicopata? Seja. Te chamaram de ditador? Seja também. Prenda. Persiga. Censure sem dó nem piedade. Poxa, você não se lembra do que eu te ensinei? É melhor ser temido do que ser amado. Aliás, essa é a única forma de você manter o poder que eu te dei.
— Qual?
— Esta: incutindo o terror nos seus adversários. Por falar nisso, quando você vai prender aquele outro, hein?
— Quem?
— Ah, não disfarça. Você sabe muito bem de quem eu estou falando. Do inominável.
—Ah, sei lá. Em 2025, provavelmente. Mas calma lá. Uma coisa de cada vez. Agora estamos falando do Daniel Silveira. Então o senhor acha mesmo que devo submetê-lo mais uma vez à humilhação da prisão em Bangu?
— Claro que acho! Daniel Silveira é aquele que ousou acreditar que tinha imunidade parlamentar para quaisquer palavras. E que o perdão presidencial servia para alguma coisa. Aquele que usou palavras para ameaçar o Estado Democrático de Direito. — Uma gargalhada maléfica ecoou pelos corredores vazios da Corte em recesso. Mas não era felicidade aquilo. Claro que não. O Das-trevas é incapaz de ser feliz. Assim como seus discípulos. — Lembra quando você tinha medo de passar por cima da Constituição e eu te falei para começar a dizer que estava defendendo a democracia?
— Lembro. Foi a desculpa perfeita. Obrigado.
— Não agradeça agora. Você terá a Eternidade toda para me agradecer. Lembra quando eu te falei pra censurar, pra perseguir e pra prender e você vinha com pudores de professor de Direito Constitucional e de frequentador da Paróquia de Sta. Teresinha?
— Lembro. Ah, se lembro. Se me lembro bem, na ocasião eu até falei em liberdade e misericórdia.
— Exato! Como você era… ingênuo. Achando que podia me convencer mencionando virtudes. As armas do meu inimigo! Que seja. O fato é que você me deu ouvidos e por isso será recompensado. Aliás, já está sendo. É por isso que você agora está aí, todo pimpão. Mandando e desmandando mais do que aquele meu outro discípulo. Quem é o maioral agora? Responde. Você ou o presidente? Não, vamos além: você ou a Constituição? Você ou a Justiça?
— Eu?
— Você! E tudo isso graças à minha ajuda. Pena que neste país não haja pena de morte.
— Ainda.
— É verdade. Uma coisa de cada vez. Primeiro o desprezo às noções mais básicas de justiça, com aquelas abomináveis valores judaico-cristãos, bem como a perversão completa do poder mundano. Depois… Mas agora consulte esse seu relógio caríssimo aí e me diga a hora.
É hora de o cronista se intrometer no diálogo entre o Dito-cujo e seu discípulo para citar as sábias palavras do papa Francisco. Que, em dizendo que o amor é paciente, na exortação apostólica Amoris Laetitia, acrescenta que essa paciência “reforça-se quando reconheço que o outro, assim como é, também tem o direito a viver comigo nesta terra. Não importa se é um estorvo para mim, se altera os meu planos, se me incomoda com o seu modo de ser ou com suas ideias, se não é tudo como eu esperava”.
Por que estou citando o Papa que muitos têm por comunista? Acontece que, na ausência de um mínimo de bom senso, de misericórdia, de preocupação com o outro na prisão do ex-deputado Daniel Silveira, o ministro Alexandre de Moraes mostra que está aplicando a doutrina de uma justiça pós-cristã – se é que se pode chamar isso de justiça. Uma doutrina que vai sendo montada assim, atabalhoadamente, com base em interesses mesquinhos e no prazer que muitos sentem ao ver o lombo alheio sendo açoitado.
De acordo com essa doutrina, tudo o que representa um estorvo para a “democracia”, ou que altera os planos das autoridades, ou que as incomoda com seu modo de ser e suas ideias; tudo que não é como eles esperam que seja deve ser de alguma forma neutralizado. Calado. Preso. Humilhado. E pensar que essa crueldade foi perpetrada assim, às vésperas do Natal, enquanto estávamos (quase) todos ocupados, tentando aprender as lições de esperança próprias da data. Se isso não é um ardil do Sem-gracejos, não sei o que mais pode ser.