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A classe média que Marilena Chauí não odeia: visitamos a Casa Marx, em São Paulo

No coração da Vila Madalena, um dos bairros mais caros de São Paulo, onde o metro quadrado custa em média R$ 11 mil, segundo a plataforma QuintoAndar, uma pequena loja vende livros, roupas usadas, cafés gourmet e até panos de prato com estampas bem-humoradas. Esse comércio não mereceria ser mencionado se não fosse por um detalhe: o endereço abriga a Casa Marx, divulgado como um “espaço cultural” que serve de sede para o site Esquerda Diário e para a Editora Iskra, duas publicações abertamente socialistas.

A junção entre essa visão de mundo e uma iniciativa com ares de capitalismo é no mínimo curiosa. Sim, Karl Marx não pregava que as pessoas devessem viver na pobreza e miséria, e até disse que “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. Mas ele, com certeza, não imaginou que usariam de suas ideias para justificar a venda de um cookie vegano por R$ 16. 

Fundada originalmente em 2018, a Casa Marx de São Paulo ficou fechada por algum tempo, mas reabriu em junho de 2024, apoiada por uma campanha de financiamento coletivo. Feita na plataforma Catarse, a vaquinha foi um fiasco e levantou só R$ 7,5 mil dos R$ 30 mil desejados, com apenas 60 apoiadores. Desde então, recebeu shows e eventos como lançamentos de livros, palestras sobre a violência policial em São Paulo e um ciclo de debates internacional com o tema “Por um Futuro Comunista”. 

Café a R$ 80 para destruir o capitalismo

Quando anunciada, a reabertura foi justificada pelo seguinte comunicado: “A Casa Marx voltou porque é preciso afiar as armas da crítica contra o capitalismo. Porque é preciso destruir o capitalismo antes que o capitalismo destrua o planeta, como mostra a tragédia no Rio Grande do Sul. Porque é preciso pôr fim ao genocídio do Estado de Israel contra o povo palestino. Porque é necessário discutir as grandes ideias do marxismo revolucionário. Porque é necessário construir uma esquerda com independência de classes para fazer a diferença nos combates dos trabalhadores, das mulheres, dos negros, dos LGBTQIAP+ e de todos os setores oprimidos.”  

Mas é realmente possível efetivar a tão sonhada “destruição do capitalismo” e incentivar a “independência de classes” com a realização de uma Black Friday em sua loja? Para o espaço parece que sim, afinal em novembro passado eles mudaram o nome da data para “Semana do Desconto Camarada”, oferecendo 15% de abatimento nos valores da “livraria, lojinha comunista, sebo e brechó”. Uma prática de marketing que reforça alguns dos muitos “capitalismos” da Casa Marx. 

Não é à toa que, vez ou outra, até os seguidores do local o questionam em suas redes sociais. Em uma postagem sobre a cafeteria, que é tocada em parceria com a loja Coado Shop, um internauta que se identifica no Instagram como “licenciado em Ciências Sociais” comentou ironicamente: “Café: 30 conto (sic)”. E embora o perfil da Casa Marx tenha respondido “tem vários valores, vc precisa vim ver de perto (sic)”, uma visita mostra que o espaço comercializa até um pacote de 200 gramas de grãos de café por R$ 80; uma rápida pesquisa na capitalista Amazon apresenta um pacote de 250 gramas de café gourmet por R$ 27,49.

Na Casa Marx, é possível encontrar um pacote de 200 gramas de grãos de café gourmet por R$ 80 (Foto: Erich Mafra)

Com o lucro maior que o e-commerce multinacional nos cafés, fica a pergunta: será que o conceito marxista de “mais-valia” é lembrado nas conversas quando os preços são tabelados pela equipe de lá? Outra idiossincrasia é que, em sua noite de abertura, a Casa se posicionou contrária à terceirização do trabalho (o que pode ser atestado live de estreia no YouTube). Já que esse é o caso, por que os marxistas cederam espaço para que outra empresa fizesse o cafezinho que serve aos seus camaradas?

Chauí se encontra com a classe média 

O evento mais recente, realizado na última quarta-feira (29), girou em torno do lançamento de um box de livros compilando o essencial dos textos de Marx e de Friedrich Engels. A coletânea estava sendo vendida por R$ 293 e foi criada pela editora Boitempo, que publica a obra da dupla no Brasil desde 1998.

A soma exorbitante do livro não é muito convidativa, afinal, é difícil pensar que um trabalhador oprimido, com um salário-mínimo de R$ 1.518, estaria comprometido a gastar 19% de sua renda em um artigo acadêmico de luxo. O valor também subverte a própria lógica do Manifesto Comunista quando foi lançado. No ano de 1848, em Londres, a obra era vendida pelo preço módico de uma moeda de threepence, o equivalente hoje a cerca de 1,2 libra esterlina (ou 8,81 reais). Muito mais acessível a um pobre proletário.

Mesmo assim, a Casa Marx estava com gente saindo pelo ladrão, com cadeiras, paredes e até o lado externo totalmente ocupados. Isso se deu porque lançamento contou com a presença de Marilena Chauí, professora emérita de filosofia da USP (Universidade de São Paulo) e conhecida pelo aforismo “eu odeio a classe média”.

Durante a palestra de Marilena Chaui, a Casa Marx não conseguiu comportar todos os interessadosDurante a palestra de Marilena Chauí, a Casa Marx não conseguiu comportar todos os interessados (Foto: Erich Mafra)

Mas antes que a pensadora de esquerda abrisse a boca para falar ao microfone, uma porta-voz do Esquerda Diário, Vanessa Dias, fez questão de relembrar a todos os presentes que nos fundos do espaço havia uma “lojinha comunista” e o café gourmet. As bebidas quentes foram vendidas e preparadas durante toda a palestra, deixando a voz de todos oprimida pelo ruído constante das máquinas de expresso. 

“Esse espaço é impulsionado pelo MRT”, explicou Vanessa, indicando que a Casa Marx é sustentada pelo Movimento Revolucionário dos Trabalhadores. Esse grupo integra a Quarta Internacional, um conglomerado de seguidores de Leon Trótski em países como Bolívia, Venezuela e Costa Rica. 

Depois da breve apresentação, Marilena e outros dois convidados falaram por quase duas horas sobre a obra de Marx e Engels. Ela, a economista Leda Paulani e um editor da Boitempo, Pedro Davoglio, comentaram especialmente sobre o trabalho de compilação do box, ofertando análises de alguns dos escritos mais impactantes.  

Mas o momento mais interessante talvez tenha ocorrido no começo, quando a filósofa contou de sua vida pessoal e de seu encontro com a ideologia que a move. “Eu comecei pelo manifesto comunista e pela diferença entre o socialismo utópico e o socialismo científico. Vocês não podem imaginar o que isso é para uma interiorana que teve uma formação católica, que foi parar na filosofia e leu esses dois textos. Eu não só fiquei boquiaberta. Eu queria que aquilo acontecesse!”, relatou a filósofa sobre seu encontro com Marx.

Um pouco antes disso, Marilena surpreendeu e finalmente assumiu: “Eu venho de uma família de classe média”.

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