“A brisa refrescante de uma janela de Overton bem aberta”, postou Elon Musk, bilionário e dublê de presidente, em sua rede social, o X, no final de outubro do ano passado.
Musk se referia ao conceito cunhado pelo cientista político Joseph Overton (1960-2003) para designar o arco de ideias consideradas aceitáveis pela opinião pública em um determinado momento. Políticos que propõem medidas muito extremas, fora dessa “janela” de razoabilidade, arriscam-se ao rechaço dos eleitores.
Mas, frequentemente, o que é impensável em um momento pode se tornar trivial pouco tempo depois.
Isso se aplica tanto a políticas que universalizaram direitos –como sufrágio feminino, casamento gay e o fim da escravidão, que a certa altura eram tidos como inaceitáveis– quanto a ideias que resvalam na barbárie.
Como se sabe, Donald Trump, o presidente dos Estados Unidos, é mestre em testar os limites da janela de Overton.
A proposta de construir um muro entre os EUA e o México, antes tida como inexequível e racista para muitos, hoje é aprovada pela maioria dos americanos. Foi de 30% de apoio durante o primeiro mandato de Trump para 52% a 57% no ano passado, segundo pesquisas Monmouth e Quinnipiac.
O veto à entrada de pessoas de sete países de maioria muçulmana, proposto também no primeiro mandato, enfrentou grande rejeição na época –mas hoje é discutido como se fosse uma ideia plausível e foi relevado até por eleitores árabe-americanos.
Desde que assumiu a Presidência em seu segundo mandato, o republicano está dobrando a aposta na normalização do inconcebível.
Seu plano de despachar os palestinos para Jordânia e Egito, “limpar” Gaza e construir resorts pé na areia no local foi comparado a ‘limpeza étnica” pelo secretário-geral da ONU, António Guterres. Mas a proposta de erradicação dos palestinos foi normalizada por muitos. O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, disse que Trump pensava “fora da caixinha” e propunha “ideias novas”. O influenciador conservador Ben Shapiro afirmou que “o pensamento criativo de Trump quebra paradigmas e muda as coisas”.
São vários os exemplos de sanewashing – tentativas de passar um verniz de razoabilidade em propostas como o degredo de imigrantes para um abrigo insalubre em Guantánamo ou a permissão para pós-adolescentes recrutados por Musk acessarem dados sensíveis dos americanos.
Agora, Trump embarca na prova definitiva da aceitabilidade do impensável. Ele ameaça ignorar o Poder Judiciário de seu país e descumprir ordens judiciais.
No domingo (9), o vice-presidente americano, J.D. Vance, deu a letra – “não é permitido que juízes controlem o poder legítimo do Executivo”, disse em rede social.
Trump, em conversa com repórteres dentro do Air Force One, declarou que “nenhum juiz deveria ser autorizado a tomar decisões como essas”.
Juízes suspenderam inúmeros decretos de Trump nos últimos dias, entre eles o que acabava com a cidadania por nascimento, o que dava a Elon Musk acesso a informações sensíveis no departamento do Tesouro, a determinação de transferência de prisioneiras transgênero para prisões masculinas e o afastamento de milhares de funcionários da Usaid.
Na segunda-feira (10), um juiz federal afirmou que a Casa Branca havia descumprido sua determinação de liberar bilhões de dólares em recursos federais, que haviam sido bloqueados por Trump. A decisão judicial foi tomada em 29 de janeiro e, até agora, o governo Trump não disponibilizou boa parte dessa verba.
O Judiciário americano é o único sobrevivente entre os principais freios e contrapesos ao poder presidencial nos EUA. O Senado e a Câmara são controlados por uma maioria republicana dócil e incapaz de questionar decretos de Trump. São legisladores com medo de ser cancelados pelo presidente e perder em primárias nas próximas eleições. Os funcionários públicos, que conseguiram coibir os piores excessos de Trump em seu primeiro mandato, estão sendo expurgados. Só vão sobrar os que passarem no teste de lealdade absoluta.
Restam os tribunais, que vêm brecando o trator trumpiano. Mesmo a Suprema Corte —com maioria conservadora, após Trump indicar três juízes em seu primeiro mandato— não deve dar chancela automática para tudo o que o presidente fizer.
“Qualquer contestação legal a decretos (de Trump) não passa de uma tentativa de minar a vontade do povo americano”, decretou Harrison Fields, um porta-voz da Casa Branca.
Caso se concretize a ameaça de desrespeitar o Judiciário, os EUA se encaminham para um novo regime, liderado por um rei-CEO como aquele imaginado por Curtis Yarvin, o guru dos techbros que são agora o esteio do governo Trump.
Mas, ao contrário do que se acredita, não são os políticos que determinam o alcance da janela de Overton –é a população. Os políticos apenas sentem que a opinião pública está pronta para determinada ideia antes considerada extrema e, então, a propõem.
Claro que a habilidade de Trump para monopolizar a escassa atenção das pessoas e o poder das câmaras de eco das redes sociais contribuem para mudanças na opinião pública.
Mas será que os americanos estão prontos para um regime pré-monarquista, em que um Executivo superpoderoso desdenha dos tribunais, e, em vez de recorrer, descumpre ordens judiciais?
Desta vez, o preço de escancarar a janela de Overton pode ser uma crise constitucional.