Eu tenho certeza de que você já rodou o feed de alguma rede social hoje. Viu até alguns reels. E se você está lendo este texto, posso apostar que segue algum parlamentar. Estou errada? É inegável que as redes sociais se tornaram uma ferramenta fundamental no jogo político. O representante que não assumir as vezes de instagrammer ou tiktoker está fadado a perder espaço na cena democrática. Mas o que isso significa no contexto mais amplo da representação política no Brasil?
A utilização das tecnologias e ferramentas de comunicação como aliadas no processo democrático pode ser vista de forma benéfica, pois ampliam o processo de compartilhamento de informações e, teoricamente, dão condições para a existência de um público bem-informado, capaz de participar do debate político.
Todavia, há também efeitos adversos a serem considerados. Recentemente, numa entrevista à Folha de São Paulo, o vereador Ricardo Teixeira (União Brasil), que assumiu a presidência da Câmara Municipal de São Paulo e tem mais de 20 anos atuação política, afirmou que tem observado a transformação dos gabinetes em estúdios de vídeo. Os vereadores, assim como deputados estaduais e federais, estão utilizando as redes sociais como principais canais de comunicação com seus eleitores.
O que vemos, muitas vezes, são parlamentares que sobem à tribuna, aguardam o assessor iniciar uma gravação, discursam com intensidade e, ao fim do vídeo, apenas recolhem seus pertences e saem do plenário rapidamente, pois o que importa são aqueles minutos ou até segundos capturados para seus seguidores (digo, eleitores). Ao que parece, o debate político genuíno, a troca de ideias, que deveria pautar o trabalho parlamentar, perde espaço para um egocentrismo midiático. O que se observa são audiências públicas e reuniões deliberativas esvaziadas, onde não há qualquer tipo de escuta ativa, ninguém debate. O que importa são os 30 segundos de “lacração” – o fenômeno já tem até nome – que alimentam uma espécie de reality show particular do parlamentar.
Esse novo comportamento se insere em um debate importante sobre o sistema eleitoral brasileiro, em especial pensando o modelo de lista aberta, que, em princípio, incentiva uma maior personalização do voto.
Nesse sentido, diversos estudos, têm analisado como essa relação dos parlamentares (em diferentes níveis legislativos) com as mídias sociais aprofunda ainda mais a individualização dos mandatos e o afastamento das esferas institucionais tradicionais. A transformação dos gabinetes em centros de produção de conteúdo digital é um reflexo dessa mudança: grande parte dos parlamentares contrata assessores especializados em redes sociais e no gerenciamento desse tipo de dados – a divulgação da agenda e rotina online se torna mais relevante que as atividades legislativas formais.
Além disso, pesquisas recentes apontam uma tendência crescente de dispersão ou fragmentação no padrão de votação no Brasil, o que significa que muitos eleitos já não têm mais um reduto eleitoral específico. As redes sociais amplificam essa dispersão, pois permitem que parlamentares alcancem eleitores de diversas regiões do estado (se deputados) ou do município (se vereadores), tornando-se menos dependentes de uma base local fixa, de uma votação concentrada numa região específica.
Diante desses elementos de transformação sociopolítica, surgem questões sobre o verdadeiro papel do parlamentar enquanto representante. Qual a importância do contato real com a comunidade? O “corpo a corpo” continua sendo essencial para a compreensão dos problemas enfrentados pela população?
O fato é que essa nova dinâmica abre espaço para políticos que não atuam em prol de questões locais específicas, como saneamento básico, habitação e transporte, mas que se concentram em bandeiras mais abstratas e “polêmicas”, que ganham tração nas redes sociais e têm apelo para eleitores de diferentes regiões e classes. Tais temas, como “escola sem partido”, não visam resolver problemas locais, mas agitam questões que se espalham por diferentes partes do colégio eleitoral.
Cresce, assim, a possibilidade de eleição de parlamentares que acumulam seguidores e se sobressaem no ato de biscoitar ao mesmo tempo em que desempenham uma performance política totalmente distante da comunidade e, ao longo do mandato, propõem projetos de lei (quando o fazem) que são totalmente desconectados da realidade e dos problemas locais daquela região.
A utilização desse tipo de ferramenta, portanto, tem transformado o comportamento dos políticos, ainda que as estruturas institucionais se mantenham as mesmas. O uso das redes sociais e a adaptação às novas ferramentas tecnológicas estão moldando as relações de poder e representação no Brasil. E o tema é tão complexo que assume, até mesmo, um caráter paradoxal, pois cada vez que um parlamentar se coloca como instagrammer (tiktoker, youtuber), ele não apenas se adapta a essa nova dinâmica, mas reforça essa tendência como aceitável e até necessária – ainda que não a aprove por completo.
Essa grande dinâmica de big brother político arrasta até os mais tímidos ou mais colados no modo “tradicional” de fazer política – comparecer na quermesse local, assistir ao jogo de futebol do time de várzea, fazer a feira no domingo cumprimentando até os tomates já não parece ser suficiente se não houve um “cameraman” registrando tudo e pintando a cena com filtros de popularidade e ares de simpatia extra para aquele “ator” político.
O debate está colocado e esse tema provavelmente vai movimentar as mentes dos cientistas políticos e sociólogos por muito tempo ainda. As questões que se colocam por hora são: quais serão os impactos dessa mudança na estrutura partidária e no comportamento dos parlamentares enquanto um coletivo? Nas bancadas? Na atuação enquanto legenda e grupo ideologicamente alinhado? Quem conseguirá equilibrar a dinâmica de trabalho de campo, pautada na conexão com sua base eleitoral, e toda essa demanda midiática que precisa ser alimentada quase que diariamente? Haverá energia e fôlego suficiente para sustentar ambos os aspectos? Que tipo de representante sobreviverá? Que tipo de modelo de representação estamos todos nós construindo?
Pronto. Fim. Pode voltar pras redes.
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