O Super Bowl do último domingo (9), realizado em Nova Orleans, não foi apenas o palco da vitória do Philadelphia Eagles sobre o Kansas City Chiefs — com direito à presença de Donald Trump, o primeiro presidente americano em exercício a assistir ao jogo pessoalmente.
Desde o fim da partida, a edição de número 59 da decisão do esporte mais popular dos EUA também vem estimulando debates sobre a tônica dos comerciais exibidos durante a transmissão, no geral bem menos woke do que os anúncios produzidos nos últimos anos.
Para a mídia progressista, a maioria das marcas se rendeu ao novo clima favorável ao conservadorismo iniciado com a eleição de Trump. Segundo esse segmento da imprensa, a própria NFL, maior liga profissional do futebol americano e responsável pela organização do espetáculo, também achou mais adequado ficar do lado dos republicanos.
Antes mesmo do dia do jogo, os críticos já condenavam a remoção da frase “End racism” (“Acabe com o racismo”) dos espaços conhecidos como endzones (áreas localizadas nas extremidades do campo). O slogan, adotado em 2020, em meio à comoção causada pelo assassinato de George Floyd, foi substituído por “Choose Love” (“Escolha o Amor”).
O porta-voz da NFL, Brian McCarthy, explicou o motivo da troca: incentivar a “união nacional” em um momento marcado por tragédias nos EUA.
“’Choose love’ é mais apropriado, porque nosso país sofreu muito nas últimas semanas, com os incêndios florestais na Califórnia, o ataque terrorista aqui em Nova Orleans e a queda de aeronaves na Filadélfia e perto da capital”, disse McCarhty.
Mas a justificativa não convenceu os jornalistas. Principalmente porque, como depois se soube, a liga fez o comunicado no mesmo dia em que uma autoridade da Casa Branca conversou em primeira mão com executivos da rede de tevê NBC sobre a ida de Trump ao Super Bowl.
Na opinião de boa parte dos comentaristas políticos, a NFL capitulou diante do presidente e de seu esforço para enfraquecer as políticas de DEI (diversidade, equidade e inclusão) na cultura americana.
Comerciais foram planejados muito antes da eleição americana
Se a mudança da frase deixou dúvidas com relação ao que realmente aconteceu nos bastidores, a suposta guinada conservadora dos anunciantes foi rapidamente desmistificada pelos especialistas do mercado publicitário.
Em primeiro lugar, eles lembraram que os comerciais do Super Bowl são planejados com quase um ano de antecedência. Ou seja, seria impossível prever o futuro eleitoral de um país tão polarizado.
E, justamente por causa dessa indefinição do cenário, as marcas optaram pela neutralidade, apostando no humor e na nostalgia em vez de defenderem causas.
Mesmo os (poucos) comerciais politicamente corretos apresentados contaram com uma linguagem mais suavizada. Até o “consciente” rapper Kendrick Lamar, atração musical do intervalo, preferiu usar recursos mais sutis para passar algumas de suas mensagens combativas.
Aliás, coube a um dos dançarinos de Lamar protagonizar o momento mais militante da festa. Ele largou seu posto no meio do show e desenrolou uma bandeira do Sudão e da Palestina, numa manifestação pela “liberdade dos dois povos”. Obviamente, foi rapidamente contido pela equipe de segurança (bastante reforçada no show deste ano em função da visita de Trump e do ataque ocorrido em janeiro em Nova Orleans).
Marca de cerveja usou o evento para se redimir de campanha woke
Ao longo da programação, símbolos da cultura pop — como a comédia romântica “Harry e Sally: Feitos um para o Outro”, a franquia de filmes de ação “Velozes e Furiosos”, o cantor Seal e os bonecos da série “Os Muppets” — foram resgatados para mexer com a memória afetiva do público em comerciais de maionese, refrigerante, sorvete, aplicativos, etc.
A cerveja Bud Light também seguiu essa fórmula emotiva e cômica, mas seu anúncio contou com um simbolismo diferente. Dois anos após sofrer um intenso boicote por parte de seu público tradicional, que repudiou a contratação de uma influenciadora transgênero como garota-propaganda da bebida, a marca fez as pazes com os consumidores celebrando a amizade masculina no Super Bowl.
Protagonizada pelo astro pop Post Malone e o comediante Shane Gillis, a peça recria um típico churrasco americano de fim de semana, em que os “parças” relaxam e fazem piadas de gosto de duvidoso.
A turma woke logo tratou de rotular o comercial da Bud Light de conservador e machista, enquanto analistas mais ponderados entenderam que se trata de uma “volta aos valores americanos essenciais”.
Filmes mais comentados trataram de união e liberdade de escolha
A controvérsia se estendeu ao par de anúncios mais comentados da noite, estrelados por dois dos nomes mais populares da indústria do cinema: Brad Pitt e Harrison Ford.
No pré-jogo, Pitt reforçou a mensagem de união proposta pela NFL ao narrar um vídeo produzido pela emissora Fox, principal veículo que transmitiu a partida.
“Ao elevar os outros, é assim que nos levantamos. Nós, o povo. Hoje nos unimos, não apenas esses jogadores e treinadores ou esses times e lados. Nós, todos nós, os sonhadores, os guerreiros, os construtores e os crentes”, disse, enquanto imagens históricas dos EUA se revezavam com registros recentes de bombeiros e cidadãos resgatando vítimas do furacão Helene e dos incêndios em Los Angeles.
Mais tarde, Ford, conhecido por ser um tanto avesso à publicidade, surpreendeu a audiência ao aparecer numa propaganda da Jeep — cuja proposta era apresentar, ao mesmo tempo, modelos elétricos e de motor a combustão, enfatizando a possibilidade de escolha do consumidor.
Ambientado num cenário rústico, amplo e com montanhas ao fundo, o filme começa com uma imagem da bandeira americana. “A liberdade é o rugido do motor de um homem. E o silêncio do motor de outro. Nem sempre concordamos sobre qual caminho seguir, mas nossas diferenças podem ser nossa força”, afirmou o ator.
Em entrevista para a revista Variety, Olivier Francois, diretor global de marketing da Stellantis, conglomerado da qual a Jeep faz parte, comentou o conceito do comercial. Segundo ele, uma parte significativa dos consumidores, que rejeita os carros elétricos, simplesmente deixou de ser contemplada pelas montadoras em suas estratégias de promoção.
“Essas pessoas não estavam sendo ouvidas. Como fabricante de veículos elétricos, eu adoraria que as pessoas os preferissem de forma massiva. Seria melhor para o meu negócio e, provavelmente, para o planeta também. Mas nos Estados Unidos as pessoas querem ter uma escolha”, disse.
Evento do último domingo foi o mais assistido da história da NFL
A opinião pública progressista, porém, não enxergou qualquer valor positivo no filme da Jeep e na transmissão como um todo.
A crítica repetiu o argumento de que o espetáculo foi usado politicamente pela Casa Branca para disseminar as ideias “reacionárias e nacionalistas” de Donald Trump — uma agenda que, segundo os progressistas, será seguida cegamente pelas empresas, preocupadas em sofrer retaliações por parte do governo.
Empresas que, encerrada a partida, festejaram uma marca histórica: o evento registrou 126 milhões de espectadores, somando todas as plataformas em que foi exibido, e se tornou a edição do Super Bowl mais assistida de todos os tempos.
Para os executivos de marketing, a comemoração teve um gosto especial. Afinal, depois de pagarem até US$8 milhões de dólares para veicular comerciais de 30 segundos, eles realmente acertaram ao decidir pela cautela.
Em uma sociedade polarizada, na qual uma mensagem equivocada poder resultar em perdas milionárias, falou mais alto o que os especialistas chamam de “segurança criativa”.
E se os anúncios refletiram alguma tendência, não foi o “retorno ao conservadorismo”. Mas, sim, o desejo de voltar a um tempo com menos divisões, e em que a política não invadia todos os espaços da vida cotidiana.