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O ciclista e a indiferença: tá, mas ele votou em quem?

Um ciclista foi morto por assaltantes em frente ao Parque do Povo, no Itaim Bibi, em São Paulo. Área nobre. Suposta e relativamente segura. As imagens, registradas por uma câmera de segurança, assustam pela banalidade. Como se tirar a vida de um pai de família em troca de um celular fosse uma coisa assim corriqueira. À toa mesmo.

No vídeo de apenas 35 segundos, vê-se Vitor Medrado em frente ao parque. São 6h12 da manhã – hora em que, de acordo com a minha avó, não tem bandido acordado. Não mais, vó. Não mais. Medrado está parado sobre a bicicleta, aparentemente consultando o celular. De repente, se aproxima uma moto.

Um nada

Medrado não parece oferecer nenhuma resistência, mas mesmo assim leva um tiro. Ele cai. O garupa desce da moto e ainda vasculha o corpo da vítima em busca de algo. A carteira, talvez. Ou os airpods. Qualquer coisa que os latrocidas possam trocar por uma cervejinha, como diria nosso distinto presidente.

Tão ou mais assustadora do que a banalidade com que se tira uma vida em troca de um celular é a indiferença dos que testemunham a violência absurda. Indiferença nascida do medo, talvez, mas que também é uma característica da vida nas grandes cidades. Onde, entre milhões, o indivíduo acaba se tornando um nada.

O funça

Na cena do assassinato de Vitor Medrado, chama a atenção a atitude de um pedestre que vem em sentido contrário. Ele carrega uma mochila nas costas. Daquelas de levar o notebook da firma. Vem em seu passo tranquilo, o homem. Talvez esteja indo para o trabalho, com a cabeça cheia de afazeres e tretas corporativas.

Passa por ele outro ciclista. Não dá para ver se eles se cumprimentam, mas acho improvável. Nas grandes cidades alguém que diga “bom dia” a estranhos é visto com desconfiança. Ele dá mais alguns passos, sempre olhando para frente. Quando Medrado leva o tiro, o transeunte (palavra feia, mas que gosto de usar) se vira rapidamente para trás e, percebendo do que se trata, volta a olhar para a frente, apressando um pouco, só um pouco, o passo.

Herói

Não quero ser injusto. Exigir coragem de quem não tem obrigação é, já disse e repito até me convencerem do contrário, covardia. Tampouco a não-atitude desse personagem é isolada. Há outros homens na cena e ninguém faz nada. Se é que seria possível fazer alguma coisa numa situação como essa.

Se me coloco no lugar do moço-de-mochila-nas-costas, porém, me imagino herói. Me imagino melhor do que ele e assim, embriagado de imaginação, onde tudo é certo e seguro, me vejo correndo em direção aos bandidos, me lançando contra a morto e tirando a arma deles. Algo assim.

Quando, na verdade, sei que o mais provável é que também eu (e você) pensaríamos em nossas famílias e sonhos, lamentaríamos o azar do nosso semelhante, e seguiríamos num passo ligeiramente mais rápido, sem olhar para os lados, talvez rezando para que Deus nos tornasse invisíveis aos bandidos.

Desprezível

E assim o vídeo continua. Vitor Medrado lá caído, não sei se morto ou agonizando. E as pessoas indo para seus compromissos, pensando em seus problemas ou então – possibilidade nada desprezível – avaliando mentalmente se é prudente ou não ajudar o ciclista caído. Se ele é digno de um gesto de caridade.

O que mais me assusta, porém, é a possibilidade, também nada desprezível, embora totalmente desprezível (se é que me entendem), de que essas pessoas aí no entorno estejam fazendo o que vou chamar aqui de “avaliação ideológica da caridade”. Algo perverso para além da imaginação e que se traduz na pergunta: “tá, mas em quem ele votou?”.

Trincheiras

Porque é assim que pensam muitos hoje em dia: só é digno do meu amor (no sentido amplo da palavra) quem está ao meu lado nas trincheiras da guerra política, ideológica e cultural. E um ciclista, ainda mais no Itaim Bibi, já viu. Vem à mente um monte de estereótipos que podem ou não ser verdadeiros. Mas não importa ou não deveria importar. Afina, é uma vida!

Ou melhor, era uma vida. Uma entre milhões. Uma entre as tantas vidas perdidas para a violência sem sentido, tornada banal e corriqueira, mas também para essa sua parceira inseparável, ardilosa e discreta: a indiferença, seja ela motivada pelo medo ou pela hostilidade ideológica – que também é uma faceta do medo. Mas isso é tema para outro dia.

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