A liberdade de expressão enfrenta sérios riscos no Reino Unido. Cidadãos têm sido presos e processados por postagens em redes sociais. Conceitos jurídicos como “comunicação maliciosa” e “ordem pública” — originalmente elaborados para lidar com distúrbios civis — vêm sendo interpretados de maneira cada vez mais ampla pelas autoridades.
A Lei das Comunicações britânica permite a abertura de processos com base na publicação de conteúdo “gravemente ofensivo”, uma classificação extremamente subjetiva, que depende da sensibilidade de quem lê.
O resultado tem sido a criminalização de comentários que, embora possam soar ofensivos ou de mau gosto, deveriam ser protegidos em qualquer sociedade que valorize a liberdade de expressão.
Quando a opinião vira ficha policial: o que são os NCHIs
Ainda mais preocupante do que essas acusações formais é a prática — sutil e insidiosa — de registrar denúncias contra cidadãos sem que eles sequer tenham conhecimento. Trata-se dos chamados “incidentes de ódio não criminais” (Non-Crime Hate Incident, NCHI na sigla em inglês), categoria criada pelo College of Policing (instituição britânica de formação e orientação policial) em 2014.
A própria expressão, vinda da polícia, soa distópica: se não há crime, por que o envolvimento das forças de segurança? E quem define o que é um “incidente de ódio”? Assustadoramente, qualquer pessoa pode ser denunciada com base em uma interpretação inteiramente subjetiva de algo que supostamente tenha dito ou feito — e isso pode ser registrado oficialmente, sem a necessidade de prova.
As orientações iniciais do College of Policing, hoje já revistas, previam que, mesmo sem crime configurado, todas as denúncias deveriam ser registradas — independentemente de haver vítima identificável ou qualquer indício de motivação por ódio.
Entende o alcance disso?
Casos absurdos que mostram o risco do sistema atual
Qualquer pessoa poderia denunciar qualquer coisa que imaginasse ter ocorrido com outra, sem apresentar qualquer evidência. E o nome do suposto autor seria incluído em registros oficiais — sem sequer ser notificado. Só descobriria a existência da acusação, por exemplo, ao solicitar uma certidão de antecedentes para fins de emprego.
Essa prática contraria princípios basilares do direito consuetudinário britânico, como o de conhecer e confrontar o acusador, e fere frontalmente o direito ao devido processo legal. O potencial de distorções é evidente. Um homem foi fichado por assobiar a música do desenho Bob, o Construtor.
Outro foi denunciado após alguém interpretar um pão de hambúrguer caído como “mensagem de ódio racial”. Casos assim, ao mesmo tempo absurdos e inquietantes, são numerosos.
Uma investigação do jornal The Telegraph revelou mais de 120 mil registros desse tipo entre 2014 e 2019.
O caso Sarah Phillimore
Dado o caráter subjetivo e a ausência de critérios objetivos, os registros têm sido usados até como forma de retaliação ou assédio. Foi o que aconteceu com a advogada britânica Sarah Phillimore, que descobriu ter sido alvo de múltiplas denúncias maliciosas. Ela só tomou conhecimento porque a própria denunciante se gabou do feito nas redes sociais. Conversei com Phillimore por e-mail:
Como você soube que havia sido denunciada por um “incidente não criminal”?
“Em junho de 2020, a pessoa que me denunciou se gabou publicamente nas redes sociais, afirmando que eu tinha um ‘histórico de ódio pela vida inteira’. Se ela não tivesse dito isso, eu jamais saberia. A polícia não me avisou. Diante disso, entrei com um pedido formal de acesso aos meus dados na Polícia de Wiltshire. Descobri que havia três registros NCHI contra mim — todos absurdos.”
Quanto tempo levou até obter uma resolução?
“Demorou cerca de 18 meses. A polícia se recusou a remover os registros, mesmo sendo ridículos. Um deles envolvia uma foto do meu cachorro com a legenda: ‘Meu cachorro me chamaria de nazista por causa de queijo’. Isso foi classificado como discurso de ódio contra pessoas trans. Após a vitória de Harry Miller no Tribunal de Apelação, em dezembro de 2021, a polícia finalmente aceitou um acordo e removeu os registros. Meu processo não chegou a julgamento, mas ainda assim me custou cerca de 50 mil libras, que arrecadei por financiamento coletivo. A lista completa dos tuítes que motivaram o primeiro registro está disponível no site da ONG Fair Cop.”
Que conselhos você daria a outras pessoas nessa situação?
“Você não será informado se houver um NCHI contra você. Sempre recomendo que as pessoas façam um pedido formal de acesso à sua ficha policial local. Se encontrarem registros que contrariem o Código de Prática Parlamentar sobre NCHI, devem apresentar uma queixa formal. Caso a polícia se recuse a remover as informações, a única saída é um processo de revisão judicial (judicial review), que é caro e exige representação jurídica especializada.”
As ONGs que lutam contra a criminalização do discurso
A organização Fair Cop, que prestou apoio a Phillimore, foi fundada pelo ex-policial Harry Miller — que também enfrentou e venceu na Justiça um caso semelhante, após ser denunciado por publicar uma limerick (estrofe humorística rimada) nas redes. A Fair Cop tem processado várias forças policiais britânicas por supressão indevida da liberdade de expressão. Outra entidade atuante é a Free Speech Union, que oferece apoio jurídico a seus membros.
Mas o fato de serem necessárias múltiplas ações judiciais para que o Estado reconheça o abuso institucional desse sistema mostra o quanto ele é prejudicial — tanto aos indivíduos atingidos quanto à confiança pública nas forças policiais.
Em 2023, novas diretrizes foram adotadas, estabelecendo que registros desse tipo só podem ser feitos quando houver “risco real” de dano significativo ou de infração criminal futura. Ainda assim, a subjetividade permanece, e muitas polícias continuam a registrar NCHIs. Só a corporação de North Yorkshire, por exemplo, registrou 216 casos desse tipo entre maio de 2024 e maio de 2025.
Líderes do Partido Trabalhista e do Partido Conservador declararam publicamente que querem encerrar os relatórios de NCHI — mas, até agora, nenhuma providência concreta foi tomada.
O Reino Unido precisa decidir: vai continuar investindo recursos públicos para monitorar ideias e crimes de pensamento, ou vai voltar a focar naquilo que a polícia deveria estar fazendo — combater crimes reais?
Katrina Gulliver é diretora editorial da Foundation for Economic Education (FEE). Doutora pela Universidade de Cambridge, já lecionou em instituições de ensino superior na Alemanha, Reino Unido e Austrália. Escreveu para veículos como Wall Street Journal, Reason, National Review, The American Conservative e New Criterion, entre outros.
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©2025 FEE – Foundation for Economic Education. Publicado com permissão. Original em inglês: When Speech Isn’t Free