Tendo sido criança entre o final dos anos noventa e início dos dois mil, quando a taxa de fecundidade no Brasil era de menos de três filhos por mulher, a doblô lotada dos pais já escapava ao padrão da época. “Imagina todas de TPM” era o comentário “engraçadinho” mais frequente, mas o que mais ouvi na infância (ou, pelo menos, do que me recordo) foi: “como é bonito esse carro cheio de meninas”.
Ainda assim, como a mais velha de cinco filhas, não tenho a menor ideia do que seja crescer em uma “família numerosa”: minha família sempre foi só grande. Eis porque acho um tanto engraçadas as manchetes nacionais que parecem se multiplicar, com o perdão da piada pronta, mais do que seus próprios personagens.
No passado recente (porque toda a história do jornalismo é feita de reciclagem), uma matéria da revista Veja deu o pontapé na celeuma e, desde então, tenho a impressão de que todos os veículos nacionais resolveram contar suas próprias histórias sobre as “famílias que não usam métodos contraceptivos”, “famílias abertas à vida” – acrescente, aqui, o adjetivo mais interessante para os mecanismos de busca –, sendo a mais recente uma reportagem do UOL, publicada na última segunda-feira (07).
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Influenciadores, cliques e a lógica da viralização familiar
Como quem já se sentou à mesa do reportariado, não é difícil compreender a predileção editorial pelo assunto: a maioria das famílias retratadas são de influenciadores digitais. Enraivecidas, os influenciadores compartilham a matéria. Compartilhada, a matéria ganha cliques. Cliques trazem anúncios, e o estagiário de jornalismo paga um lanche – e se você, leitor, presumia algo diferente dessa lógica: seja bem-vindo à internet, fique à vontade e não repare a bagunça.
Soma-se a isto, enfim, a má-vontade, a implicânciazinha, que meus caros ex-colegas transparecem ao tratar do assunto, postura à qual não discordo de todo. A despeito de serem cada vez mais raras, famílias grandes sempre existiram. As “famílias numerosas”, por sua vez, viraram uma grife da internet.
Sem querer culpar a vítima pela doença do agressor, sobre a qual falaremos mais adiante, há que se reconhecer que o ambiente virtual em torno de algumas (soletre em voz alta, se preciso: al-gu-mas) dessas famílias instagrâmicas atingiu altos índices de xaropice adicionada.
Os exemplos são variados: o curioso caso da mãe de muitos filhos que recomenda que outras abram mão de qualquer ajuda de terceiros para cuidar das crianças ou da casa, sem abrir mão de uma rotina regrada de exercícios e Missa diária, tendo ela mesma condições de arcar com funcionários e personal trainer (evidentemente, o problema não jaz na escolha por cuidar dos filhos e da casa, nem nos funcionários, nem no personal trainer: mas na recomendação); ou o influenciador que, eu bem me lembro, espinafrou uma seguidora que lhe perguntou como preparam os filhos para a chegada de um irmão: “vocês, que tem dois ou três filhos, é que se preocupam com essas frescuras”.
Mais pela intenção geral do que pela acusação específica, este segundo exemplo me marcou sobremaneira: parecia-me explicitar, enfim, o que “os numerosos” da internet pensam sobre nós, reles mortais, suando entre um ou dois ou três pequenos – como se, inclusive, famílias grandes começassem com cinco filhos por vez.
Relatos reais que contrastam com a fantasia digital
Se repórter ainda fosse, em vez de encher o saco de famílias que estão por aí simplesmente vivendo suas vidas, é nisto que eu estaria interessada: nas respostinhas atravessadas e falsas, fontes de neurose e escrúpulos, nos cursos falcatrua e sinalizações de virtude, deveras distantes do que postula a Santa Madre Igreja Católica, recorrentemente invocada como justificativa para tanta pose.
Mas, porque ninguém deixa de ser repórter por completo, guardo comigo as aspas que recolho azucrinando os amigos pais de vários filhos, além dos meus próprios pais (que nunca tiveram nada remotamente parecido com uma “rotina de exercícios”), e que eu gostaria de ver entremeadas aos relatos sobre a vida com muitas crianças: “o tempo em que cuidei sozinha de dois filhos foi um dos mais difíceis da minha vida”, contou-me uma mãe de cinco. “Mudei de país para estar perto da família e ter rede de apoio”, “no dia em que vou à academia, a casa fica uma bagunça”, “não existe mágica, nem fórmula”, “com o tempo, você aprende a fazer as coisas com o caos acontecendo”.
Muito mais do que lições de influenciadores, são relatos como estes ajudam a conferir alguma leveza, alguma tranquilidade, aos dias mais exaustivos, sem em nada drenar o desejo por filhos: pelo contrário, dão-me esperança.
Da parte de quem passou a revirar os olhos para um assunto que devia ser banal, deixo sugestões semânticas: “famílias numerosas” voltam a ser “famílias grandes”, “com muitos filhos”, como se queira, enquanto palestras sobre “abertura à vida” somem das caixinhas de Instagram, que passam a tratar da alegria de poder ter os filhos que vierem.
A bem da verdade, tendo cada vez mais a crer que muita justificativa esconde alguma vulnerabilidade, ou sanha de propaganda. Quando perguntaram ao meu pai por que ter uma família grande, fiquei feliz por vê-lo responder: “porque gosto”.
O desconforto midiático com a maternidade como bem em si
Volto, enfim, à obsessão da imprensa com os pais e mães de muitos filhos. É curioso, para não dizer deveras sintomático, que essa obsessão se manifeste precisamente enquanto o país amarga uma crise demográfica mais voraz do que a que estava prevista.
Com relação à isso, ao menos, jornalistas não dormem em serviço, e com frequência apontam, com sólidas evidências, alguns dos elementos por trás do problema: custos básicos de vida cada vez mais altos a sobrecarregar uma geração especialmente solitária e amargurada que, por outro lado, é herdeira de uma cultura afoita por sucesso profissional, bem como pela igualdade de gênero – termo que, por si só, uma discussão à parte.
Em um esforço de recorte enviesado pelo olhar de uma mãe que gosta tanto do tempo com os filhos quanto do tempo trabalhando em silêncio sem eles, olho em especial para a forma como, sob o mote de retratar as “famílias numerosas”, estes artigos tratam a maternidade.
Penso já ter expressado o suficiente o quanto a pose de algumas gloriosas mães numerosas me incomoda, a ponto de que o leitor entenda também quando digo que, via de regra, quando um grande veículo de comunicação aborda a maternidade, há um certo azedume, um certo “mas veja bem…” que não se trata apenas da devida consideração dos desafios contemporâneos, mas que descamba em uma constante dúvida, um pulga atrás da orelha, com relação às famílias que decidiram tomar os filhos por prioridade.
Saltam-me aos olhos a ausência de perguntas que denotam uma genuína curiosidade pela vida prática, ordinária (“com dois ou três filhos chorando ao mesmo tempo, você já abriu uma cerveja?”; “é humanamente possível ter uma rotina de sono silenciosa e relaxante para o bebê em um apartamento pequeno, com um irmão mais velho falando pela casa?”; “qual dos seus filhos mais se parece com você?”). Ainda que o receio da romantização seja um argumento, estes textos parecem-me, às vezes, na melhor das hipóteses, receosos demais em reportar qualquer satisfação, como se ver os filhos como um bem em si mesmo fosse algo além de qualquer imaginação.
O que me leva a pensar que se trata, no fim das contas, do mais severo dos problemas: um problema de premissa, o qual a mais recente abordagem jornalística das “famílias numerosas” também é ilustrativo.
O erro da imprensa ao tratar a doutrina católica como lista de proibições
Na sequência à primeira reportagem, o UOL publicou uma matéria sobre a principal encíclica papal a sustentar a doutrina católica sobre planejamento familiar: Humanae vitae, escrita pelo Papa Paulo VI em 1968.
Não está ruim, o artigo, e a despeito do título chamativo, não traz nenhuma grande desinformação sobre o documento em questão ou sobre a visão católica da sexualidade (que inclui francos elogios ao uso dos métodos naturais de planejamento familiar, reforçados pela Teologia do Corpo de João Paulo II…) mas, nem por isso, deixa de soar como uma lista de regras arbitrárias para quem está de fora do jogo.
Daí porque eu, particularmente, acho que a teima em falar em “abertura à vida” é desperdício de latim, sobretudo entre influenciadores e intelectuais tão algozes quanto vítimas de uma cultura sem grande apreço pela vida humana.
Aos pais de muitos, poucos, quaisquer filhos, e seus admiradores, interessados na reversão deste nefasto desinteresse, deixo a inquietante reflexão do escritor Gustavo Corção, à qual retorno uma e outra vez, sempre que me esforço para destrinchar, para colegas, amigos e curiosos, essas e outras decisões impopulares:
“Temos de falar, dentro de uma civilização, contra os seus critérios. Temos de nos dirigir a pessoas impregnadas de postulados que levam a conclusões opostas às nossas. Mas, se é impossível a demonstração cabal, impossível não é o tratamento indireto que produza no ouvinte, ou no leitor, um primeiro abalo, uma simpatia que, por sua vez, produza a disposição de aceitar o penoso trabalho de uma revisão profunda de valores. Não deve ser a da pedagogia que se firma na ostensiva superioridade do mestre que tem a verdade no bolso. Ao contrário, para atingir o lugar secreto onde se instala a dogmática pessoal, é preciso usar processos mais humildes e cordiais. Saberemos fazê-lo?”
Maria Clara Vieira Rousseau é jornalista, diretora da ONG Family Talks e mãe da Aurora e do Afonso