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A história esquecida dos piratas que invadiram o Brasil 

No Brasil, os piratas são personagens da história, e não apenas de estórias. Embora seja pouco ensinada na escola, esse período teve desdobramentos importantes sobre o que viria depois.

Em 1678, uma das muitas editoras holandesas que então se dedicavam a publicar narrativas de viagem, a Jan Ten Hoorn, lançou uma obra que rapidamente se tornou célebre por toda a Europa e suscitou um sem número de traduções: De Americaensche Zee-Roovers (Piratas da América). O autor, o francês Alexandre Olivier Exquemelin (1645-1707), nascera em Honfleur, por volta de 1645, e emigrara para a protestante Amsterdam com o intuito de tornar-se cirurgião. Uma vez formado e impedido de exercer a sua profissão na França – a Contrarreforma impunha várias restrições aos protestantes –, o jovem engajou-se na Companhia Francesa das Índias Ocidentais e embarcou para o Caribe.

O navio em que ele viajava, no entanto, naufragou nas imediações da ilha de Tortuga e Exquemelin acabou capturado pelos piratas e vendido como escravo. Depois de servir por três anos ao senhor de La Vie, o francês juntou-se aos bucaneiros (piratas) da região, e durante vinte anos navegou ao lado de ladrões dos mares que se tornaram famosos – inclusive nas telas do cinema. 

Parte dessa fama e da imagem romântica que herdamos dos piratas e da pirataria devem-se exatamente ao livro de Exquemelin. Publicado inicialmente em holandês, o relato, um misto de autobiografia, notícias de ouvir-dizer e uma pitada de fantasia, foi rapidamente traduzido para o espanhol (1681), para o inglês (1684) e para o francês (1686).

As razões de tamanho interesse foram muitas. Ingleses, franceses e holandeses, grandes consumidores de narrativa de viagem, certamente se regozijavam ao tomar conhecimento dos muitos prejuízos que seus valentes e aventurosos navegadores – muitos posteriormente contratados pelas marinhas oficiais de seus países – vinham impondo ao inimigo espanhol. Os espanhóis, por sua vez, estavam mais interessados em conhecer o inimigo e por fim às suas peripécias; não por acaso, a primeira tradução da obra para o castelhano tem como subtítulo “à luz para a defesa das costas das Índias Ocidentais” e traz, numa nota ao leitor, a seguinte advertência: “Acredito que esta relação não apenas impulsionará aqueles que devem proteger aquele Novo Mundo com mais precaução do que têm tido até agora; mas também lhes dará luz para a defesa das costas das Índias e ilhas espanholas da América, e que também todos os vassalos de Sua Majestade Católica verão as partes mais frágeis e necessitadas de remédio daquela grande parte do Orbe”. 

De fato, os espanhóis foram as grandes vítimas de duas formas de pirataria. A primeira era aquela divulgada por Exquemelin, praticada no Caribe por particulares que navegavam sem nenhuma bandeira (piratas). A outra, um pouco menos conhecida e mais tardia, foi praticada entre 1690 e 1720 por navegadores franceses nos portos do Mar do Sul (Pacífico). Esses navegadores que tinham uma carta de corso, isto é, a autorização de um rei para praticar pilhagem e saque contra embarcações e portos de outras nações. 

Corsários a caminho do Mar do Sul  

É essa segunda leva de pirataria, destinada aos portos do Chile e do Peru e empreendida majoritariamente por corsários franceses, que levou o desassossego às costas do litoral brasileiro e culminou com a invasão e o saque do Rio de Janeiro por René Duguay-Trouin (1673-1736) em 1711.

O interesse francês pela região vinha da segunda metade do século XVII, quando se tornaram frequentes nos portos do país notícias de que, pelas costas do Chile, do Peru e, em menor quantidade, do Brasil, circulavam galeões espanhóis e portugueses carregados com imensas riquezas e parcamente protegidos. Essas notícias, sempre um pouco exageradas, vinham sobretudo de flibusteiros (piratas) que tinham andado aos saques e butins pela região. Era gente que agora, em decorrência dos tratados de paz entre as coroas espanhola e francesa, retornava para casa anistiada, uns realmente ricos, outros, nem tanto, mas todos munidos de uma experiência que eventualmente poderia ser útil aos planos da coroa de levar o comércio – e o corso – francês aos ricos portos espanhóis do Mar do Sul. 

Em 1694, um desses piratas anistiados retornou à França depois de perambular três anos e meio pelo Pacífico e recolher, a custa de saques, mortes e violações, uma fortuna razoável. François Massertie, no entanto, não era um homem talhado para a aposentadoria e logo tratou de procurar interessados que pudessem viabilizar o seu projeto de retornar ao Mar do Sul para mais saques e butins. 

As ideias de Massertie encontraram excelente recepção entre armadores, mercadores e navegadores, mas cativou especialmente o oficial da marinha francesa Jean Baptiste de Gennes (1656-1705). Ele tratou de apresentar a proposta a Luís XIV, a quem prometeu mapear a região, favorecer o comércio francês, criar obstáculos ao trânsito de riquezas das colônias espanholas para a metrópole e, sobretudo, instalar uma fortaleza francesa nas proximidades do Estreito de Magalhães. A desafortunada expedição do senhor de Gennes, por razões diversas, entre as quais a inexperiência do capitão, não “conquistou” o Estreito de Magalhães e tampouco alcançou os cobiçados portos do Peru e do Chile. Entretanto, ela, abriu caminho para a exitosa viagem da frota capitaneada pelo navegador Jacques Gouin de Beauchesne (1652-1730). 

A história dessa bem-sucedida viagem teve início pouco tempo depois do retorno do senhor de Gennes, em 1698. Foi quando dois ricos mercadores, Noel Danycan (1656-1735), o senhor de Lépine, de Saint-Malo – o armador responsável por quase 90% das embarcações que saquearam as costas do Brasil –, e Jean Jourdan, de Gruée, resolveram criar a Companhia de Comércio do Mar do Sul e dar um tom eminentemente comercial ao que de Gennes concebera como uma empresa de conquista e exploração. 

Foi essa viagem encabeçada por Beauchesne que consolidou, entre os franceses, a rota para o Mar do Sul. O caminho que passou a incluir uma passagem ou duas pela costa do Brasil, notadamente pela ilha Grande ou pelo Rio de Janeiro, onde as embarcações poderiam fazer aguada – e saquear as vilas e roças da costa – antes de tentar a sorte no Estreito de Magalhães. Entre 1695 e 1726, sob o pretexto de descobrir terras e estabelecer comércio, 168 embarcações zarparam dos portos franceses com destino ao Mar do Sul. As 117 que retornaram (umas se perderam, outras foram confiscadas e algumas vendidas aos espanhóis) trouxeram para a França cerca de 125 milhões de libras. 

Tempos de agitação no litoral fluminense 

Dessas 168 embarcações corsárias, muitas passaram pelo Brasil e um punhado delas contou com capitães e tripulantes zelosos que, atendendo às reivindicações do rei – Luís XIV pediu que os navegadores relatassem o que vissem pelo caminho, um caminho pouco conhecido dos europeus –, deixaram registrado tais “visitas” em seus diários de bordo. Um deles foi Jean de Boisloré, capitão do navio Toison-d’Or, que, a caminho do cabo Horne, desembarcou na ilha Grande, entre 8 e 19 de outubro de 1706, em companhia de outras duas embarcações.

O capitão, que precisava de água e víveres e teve alguns problemas para obtê-los na região, deixou o seguinte conselho aos seus colegas que eventualmente passassem pelo lugar: “Para quem vai da França rumo ao Mar do Sul, em tempos de guerra, o porto da ilha Grande é bom para captar água e recolher madeira; não falta também pesca com rede de cerco. Em tempo, se mandares ameaçar os habitantes da vila de ilha Grande de queimar os seus dois conventos, tendo bombardeado um deles, eles enviarão bois, porcos, galinhas, e muitas frutas que a terra produz: inhame, laranja, limão, banana, figo e arroz”. 

Os conselhos de Boisloré não caíram no vazio; muitas daquelas 168 embarcações mencionadas acima fizeram aguada na ilha Grande e utilizaram os métodos pouco diplomáticos sugeridos pelo navegador.

Em julho de 1707, por exemplo, a região viu-se assombrada por quatro navios franceses que, por cerca de um mês, bombardearam casas e conventos, capturaram diversas embarcações, saquearam vilas, roças e aldeias e fizeram reféns, trocados posteriormente por bois, peixes, frutas e ouro. O tenente Alain Ebrard Du Pré, que viajava a bordo do navio Phelypeaux, relatou essa lucrativa passagem da frota francesa pelo lugar em dois escritos (uma carta e um roteiro marítimo), ambos dirigidos ao seu patrão, o armador Noel Danycan. Aí, o tenente conta que durante a ancoragem foram capturadas mais de dez embarcações portuguesas, entre baleeiros e barcos de transporte; nesses, além de muitos gêneros alimentícios (pescado seco, trigo, farinha de mandioca, vinhos etc.), os corsários amealharam uma boa quantidade de ouro em pó, confiscada de passageiros que vinham das Minas Gerais a caminho do Rio de Janeiro.

Du Pré, ao exaltar a viagem para o seu patrocinador, afirma: “Os navios que o Senhor enviou ao estreito de Magalhães descobriram essas e outras ilhas [o corsário se refere a algumas ilhas do Arquipélago das Malvinas], observaram e corrigiram os erros que os antigos cometeram na localização do cabo Horne e fizeram tremer as costas do Brasil, capturando nada menos do que doze navios, de modo que se pode dizer que a navegação e o comércio lhe devem infinitamente”. 

O ponto alto da atividade corsária no litoral fluminense deu-se, no entanto, um pouco mais tarde, no biênio 1710-1711, com duas invasões à cidade do Rio de Janeiro. Em 1710, Jean François Duclerc (16??-1711), a serviço de particulares, armou seis embarcações, recrutou 1500 soldados e atacou a cidade, então conhecida na França por ser o escoadouro das riquezas provenientes das minas. Mas a invasão, muito mal preparada pelo corsário, resultou num completo fiasco e o seu líder, o capitão Duclerc, foi detido e acabou assassinado no Rio de Janeiro por um marido traído furioso. 

A destruição causada por Duguay-Trouin 

Duguay-Trouin, também à serviço de particulares, tentou a sua sorte no ano seguinte. A bem da verdade, por três anos consecutivos (1706, 1707 e 1708) o corsário atacara “a frota do Brasil”, malogrando em todas as três tentativas. Antes de aventurar-se a mais um fracasso em alto-mar, o francês resolveu dirigir-se diretamente ao depósito das riquezas: o Rio de Janeiro. Duguay-Trouin, a quem não faltava prestígio e boas relações, era mais prevenido que seu antecessor. Ele reuniu mais meios para sua empresa (ricos comerciantes de Saint-Malo chegaram a fundar uma sociedade para financiá-la). O corsário vinha à frente de 5.000 homens, distribuídos em 17 embarcações.

Em 12 de setembro de 1711, aproveitando um forte nevoeiro, os franceses entraram triunfantes pela baía da Guanabara e, em menos de uma semana, assenhoraram-se da cidade do Rio de Janeiro e de suas fortalezas. Aí permaneceram até o dia 13 de novembro, quando partiram levando nos porões de suas naus um resgate milionário arrancado aos cariocas e deixando atrás de si uma cidade em ruínas e uma população revoltada com o seu governador, Francisco de Castro Morais (16??-1738), o Vaca, a quem culpavam pela tragédia. 

Foram tempos conturbados na urbe. Tempos em que, sem saber ao certo como proceder diante da legítima revolta da população, o interventor Antônio Albuquerque (1655-1725) fez o que pôde para restituir a normalidade num Rio de Janeiro destruído e empobrecido. A situação teve de ser contornada com prudência, adiando a cobrança de impostos, reparando, às custas do tesouro, os estragos deixados pelos franceses e, sobretudo, desencadeando uma investigação para apurar as supostas culpas de Castro Morais. O governante que teve a má sorte de estar à frente da última cidade da América Portuguesa a sofrer um ataque corsário foi, num primeiro momento, julgado culpado pela perda da cidade e condenado ao degredo, com prisão perpétua numa fortaleza da Índia. O Vaca, no entanto, foi perdoado em 1730 e retornou para Lisboa, com direito a ter seus vencimentos restituídos. Os impostos e taxas sobre os cariocas também retornaram, aos poucos e permeados por perdões e isenções, mas retornaram. Daquele fatídico mês de setembro de 1711 restou somente um temor e uma desconfiança difusos em relação aos franceses, manifestos toda vez que um navio ostentando a bandeira daquela nação se aproximava da entrada da baía de Guanabara. 

Para saber mais

  • Alexandre Olivier Exquemelin. Piratas de América. Edição de Manuel Nogueira. Lingua Ediciones, 2024.<br>
  • Charles de Brosses. Histoire des navigations aux terres astrales. Paris: Durand, 1756. 2v.<br>
  • Erik Wilhelm Dahlgren. Voyages Français á destination de la mer du sud avant Bougainville (1695-1749). Paris: Imprimerie Nationale, 1907.<br>
  • Jean Marcel Carvalho França e Sheila Moura Hue. Piratas no Brasil: as incríveis histórias dos ladrões dos mares que pilharam nosso litoral. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2014.<br>
  • Jean Marcel Carvalho França. Navegantes franceses na América portuguesa (1615-1767) [No prelo]. São Paulo: Editora Chão, 2025.<br>
  • Jean-Paul Duviols. L’Amérique espagnole vue et rêvée les livres de voyages de Christophe Colomb à Bougainville. Paris: Editions du cercle de la librairie, 1985.<br>
  • John Selwyn Bromley. French Traders in the South Sea: The Journal of Lieutenant Pitouays, 1706-1709. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 1979.<br>
  • Max Justo Guedes. Hidrógrafos franceses ao longo da Costa Brasileira, 1695-1710. Revista Navigator, n. 17, p 87-119, jan./dez. 1981.

Amanda Peruchi é pesquisadora de pós-doutorado em História na Universidade de São Paulo. É autora, entre outros títulos, de A institucionalização da farmácia brasileira: Rio de Janeiro e Bahia (1808-1891) (Editora Fiocruz, 2023) e Ecos da Independência: a opinião pública em 1822 (Cultura Acadêmica, 2022). 

Jean Marcel Carvalho França é professor titular de História do Brasil da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) e autor, entre outros, dos seguintes livros: Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista (Imprensa nacional – Casa da Moeda, 1999), A Construção do Brasil na Literatura de Viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII (José Olympio/Editora da UNESP, 2012), Franceses no Brasil (Chão Editora, 2021) e O Rio de Janeiro em língua portuguesa (1576-1808) (Editora da UFSCAR, 2024). 

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