O retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos marcou uma guinada nas relações econômicas internacionais. Contrastando acentuadamente com décadas de relativo consenso em torno do multilateralismo e da globalização impulsionada pelo livre comércio, a administração Trump orquestrou um conjunto de políticas que, à primeira vista, poderiam ser interpretadas como uma série de impulsos erráticos.
Contudo, uma análise mais detida revela uma estratégia coesa e calculada, visando a uma reconfiguração fundamental da ordem econômica mundial, com o dólar americano no cerne de suas ambições. As iniciativas de Trump não são meras reações isoladas ou impulsivas, mas sim os pilares de uma doutrina elaborada para restaurar a primazia industrial americana, combater o que é percebido como práticas comerciais desleais de parceiros e adversários, e, em última instância, fortalecer a posição geopolítica dos Estados Unidos, mesmo que isso implique abalar as fundações do sistema que o próprio país ajudou a construir.
A Estratégia de Desvalorização Controlada do Dólar: Uma Arma Silenciosa
No coração dessa estratégia reside a intenção declarada por um dólar americano mais fraco. Para o leigo, a fraqueza da moeda pode soar como sinal de instabilidade ou declínio econômico. No entanto, para Trump, um dólar desvalorizado é uma ferramenta multifacetada de poder e reindustrialização.
Economicamente, um dólar mais fraco torna as exportações americanas mais competitivas nos mercados globais. Inversamente, ele encarece as importações, incentivando os consumidores e as empresas a optarem por produtos e serviços de fabricação doméstica. Essa dinâmica atrai investimentos estrangeiros diretos para os EUA, impulsiona a produção industrial, gera tecnologia, emprego e renda para o trabalhador americano – o eleitorado central de Trump.
Essa estratégia se manifesta na pressão exercida sobre o Federal Reserve (Fed) para manter as taxas de juros baixas. Taxas de juros elevadas atraem capital estrangeiro em busca de maiores retornos, fortalecendo artificialmente o dólar e, consequentemente, prejudicando a competitividade das exportações americanas.
A retórica presidencial frequentemente criticava o Fed por inibir o crescimento econômico e a reindustrialização com uma política monetária considerada excessivamente apertada. Este ambiente de taxas de juros baixas, aliado à crescente dívida pública e ao déficit comercial, cria um cenário propício para uma desvalorização gradual e “natural” do dólar, sem a necessidade de intervenções cambiais diretas e potencialmente controversas, que poderiam ser classificadas como manipulação de moeda.
Além de benefícios econômicos internos, a desvalorização do dólar é vista como arma estratégica para enfraquecer adversários globais, notadamente a China. Ao tornar as exportações chinesas proporcionalmente mais caras e as americanas mais baratas, a atual gestão busca reequilibrar uma balança comercial há muito tempo desfavorável aos EUA. Para Trump, o dólar forte era um subsídio implícito aos exportadores estrangeiros, e era hora de desmantelar essa vantagem.
A Nova Reindustrialização Americana: O Retorno do “Made in USA”
A promessa de “Make America Great Again” passa intrinsecamente pela reindustrialização do país. Trump defende a reversão de décadas de deslocalização da produção industrial para países com mão de obra mais barata e regulamentações menos rigorosas, como México, Canadá e China. Setores como o do aço, alumínio e automotivo foram alvos específicos dessa nova aposta. As tarifas impostas sobre o aço e o alumínio importados, por exemplo, visam a proteger as indústrias domésticas da concorrência estrangeira, que Trump considera predatória e injusta. A retórica é clara: empregos e fábricas devem retornar aos Estados Unidos, mesmo que isso signifique uma quebra nas cadeias de suprimentos globais e um aumento dos custos para os consumidores no curto prazo, embora os ganhos de renda e a elevação no nível de empregos, no médio prazo, compensem essa perda inicial.
Embora grande número de empresas, como Nvidia, Roche, Merck, Novartis, Apple, Stellantis, Hyundai, e governos estrangeiros, como Emirados Árabes e Arábia Saudita, tenham anunciado investimentos da ordem de trilhões de dólares nos EUA, ainda não é possível avaliar o impacto de medidas nos principais indicadores econômicos norte-americanos. Os números permanecem estáveis desde a posse de Trump, segundo o U.S. Census Bureau, órgão do governo que monitora a atividade econômica e os níveis de emprego naquele país.
O Impacto na China e na Dívida Externa dos EUA: Xeque-Mate Cambial?
A estratégia de desvalorização do dólar tem implicações particularmente profundas para a China, que não é apenas um dos maiores parceiros comerciais dos EUA, mas também o segundo maior detentor estrangeiro de títulos da dívida americana, após o Japão. A China acumula US$ 3,3 trilhões em reservas cambiais, predominantemente em ativos denominados em dólares, como os títulos do Tesouro dos EUA. Uma queda no valor do dólar americano, embora gradual, representaria dupla punição para Pequim.
Primeiramente, as reservas chinesas em dólares perderiam valor, erodindo parte de sua riqueza acumulada através de décadas de superávits comerciais com os EUA, o que tem um custo fiscal real para o Banco Popular da China e, por extensão, para o governo chinês.
Em segundo lugar, a desvalorização do dólar implica um fortalecimento relativo do yuan chinês, o que tornaria os produtos chineses mais caros no mercado internacional e, consequentemente, menos competitivos. Para uma economia tão dependente das exportações quanto a chinesa, essa pressão cambial, somada às tarifas punitivas impostas pela guerra comercial, representa golpe significativo.
Na segunda parte deste ensaio, trataremos da reconfiguração da Ordem Econômica Mundial, de suas possíveis consequências e do futuro do estatuto do dólar como moeda global de reserva.
Marcos Degaut é doutor em Segurança Internacional, pesquisador sênior na University of Central Florida (EUA), ex-secretário especial adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e ex-secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa.