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Como a polícia secreta soviética perseguia os “inimigos” de Stalin

“Nos Campos de Concentração Soviéticos” (selo Avis Rara), de Vladimir V. Tchernavin (1887-1949), é um dos primeiros relatos documentados sobre o gulag e a repressão do regime stalinista. Cientista especializado em ictiologia, Tchernavin descreve como sua vida foi destruída pela lógica distópica do planejamento central soviético, que transformava fracassos do sistema em pretextos para perseguições e execuções.

No recorte a seguir, que abre o livro, o autor descreve como as metas absurdas impostas pela ditadura de Stalin resultavam em acusações arbitrárias de “sabotagem” contra trabalhadores. Também mostra que a paranoia e o terror gerados pela burocracia comunista destruíram qualquer senso de solidariedade, criando uma sociedade marcada pela delação e pelo medo.

Eu não conseguia dormir. Era uma noite no fim de março em Murmansk, muito além do Círculo Polar Ártico.

O vento uivava do lado de fora do meu alojamento — um quarto e uma cozinha minúsculo — e uma corda congelada, que servia de varal para pendurar a roupa, batia contra a parede de madeira da casa.

A aurora boreal brincava no céu, e como que em resposta os fios elétricos emitiam ruídos, ora um zumbido baixo, ora o barulho de uma sirene de navio a vapor. Minha mulher e meu filho pequeno estavam em nossa casa em Leningrado, e como de hábito eu passava a noite sozinho em meu quarto.

Não era uma moradia bonita de ver: a mobília se resumia em duas mesas, três cadeiras, uma estante de livros e um sofá. No sofá, que me servia de cama, eu tentava dormir.

Subitamente escutei um ruído na casa e alguns passos. Imaginei que algo havia acontecido no porto e os marinheiros tivessem vindo à procura do assistente do administrador da frota pesqueira.

O pobre homem não tinha um instante de paz, nem de dia nem de noite. Apurei os ouvidos e prestei atenção. Sim, estavam batendo na porta dele. As batidas cessaram. Duas horas depois começaram a bater vigorosamente na minha porta.

Odiei a ideia de ter de me levantar. Pensei que fosse algum engano. Talvez um marinheiro bêbado batendo na porta errada. As batidas continuaram. Levantei-me do sofá e fui até a porta sem vestir nada sobre as minhas roupas de dormir.

— Quem está aí? — perguntei.

— Abra! — alguém ordenou.

— Quem é você e o que quer?

— Que absurdo é esse? Está tentando entrar na casa de uma pessoa às duas da manhã! Quem é você e o que quer?

— Abra logo de uma vez! É o GPU.

GPU são as iniciais da expressão em russo que significa Diretório Político do Estado, uma organização soviética da polícia política secreta que substituiu a polícia secreta conhecida como Tcheka (e antecedeu a KGB).

Embora similar em alguns aspectos ao serviço secreto de outras nações europeias, o GPU tem funções muito mais abrangentes no que diz respeito à jurisdição e também à administração do poder na URSS.

GPU é uma forma abreviada da sigla oficial OGPU, ou Diretório Político do Estado Central; embora seja habitualmente usada em referência ao OGPU, GPU é a sigla correta para designar as ramificações dessa organização nas províncias, que frequentemente atuam como unidades inteiramente independentes.

O GPU diz respeito ao escritório central dessa organização em Moscou, e é a sigla usada em todas as ordens e comunicados oficiais que vêm de lá, e em discursos, quando se deseja uma nota de autoridade.

— Ah! Nesse caso, entrem, por favor. Se vocês tivessem dito isso antes, eu não os teria feito esperar.

Três homens entraram. Dois usavam o uniforme militar do GPU e portavam revólveres, e o terceiro, um membro do Exército vermelho, tinha um rifle. E lá estava eu diante deles, de camiseta e chinelos.

— Você tem armas de fogo? — eles me perguntaram.

Não consegui reprimir um sorriso. Como eu poderia esconder armas de fogo sob uma camiseta?

Deixei que me revistassem, depois me vesti e me sentei numa cadeira no meio da sala. O soldado da Guarda Vermelha ficou encostado na porta, enquanto os agentes do GPU começaram a vasculhar as minhas coisas. Eu os observei.

O que eles estariam procurando? Os homens reviraram tudo o que havia na minha mesa, que estava atulhada de manuscritos e anotações que eles não poderiam entender. Estranhamente, voltaram a colocar tudo no lugar com algum cuidado; parecia que os meus documentos não interessavam a eles.

Então remexeram nos meus artigos de vestuário e tiraram todas as cinzas do fogão. Eu me perguntei o que eles esperavam encontrar escondido num fogão que ainda estava quente. Eles reviraram a minha cama e também verificaram cada um dos livros. Em minha estante havia vários sacos pequenos de aveia e açúcar do armazém da cooperativa.

Eles esvaziaram os sacos cuidadosamente e examinaram o conteúdo. Mas o que eles procuravam, afinal? Já fazia horas que estavam nisso, entregues à tarefa de revistar um quarto pequeno onde não havia praticamente nada. Nem mesmo tinham lido os meus papéis.

A coisa toda começou a ficar cansativa, e eu parei de observá-los. Ocorreu-me que se eles me prendessem agora e começassem a me arrastar de uma prisão para outra, minha mulher não saberia o que havia acontecido comigo, pois eu não poderia avisá-la, e ela ficaria ansiosa e angustiada.

Por fim, um dos homens se voltou para mim e me perguntou se eu tinha um machado.

 — Vamos ter que arrancar o assoalho — ele respondeu friamente.

Isso me deixou perplexo. Era estranho entrarem na casa de um cientista no meio da noite, vasculharem sacos de açúcar em busca de alguma coisa, tirarem cinzas do fogão e, como se não bastasse tudo isso, destruírem o chão de uma habitação que pertencia ao governo.

— Sim, eu tenho um machado — respondi, e fui pegá-lo na cozinha.

Porém agora, para a minha surpresa, a energia deles parecia ter se esgotado. Depois de confabularem por alguns minutos, decidiram poupar o assoalho. O espetáculo chegara ao fim.

Os homens preencheram uma declaração atestando que nada de incriminador havia sido encontrado durante a busca, e então partiram. E eu não fui preso, afinal.

Por que realizaram todo esse procedimento na minha casa? Eu não fazia a menor ideia. Já eram seis da manhã. O que eu deveria fazer? Agora que eles haviam se retirado, eu fiquei nervoso e zangado.

Quem poderia saber o que procuravam? Que comédia estúpida!

Eu já não tinha mais sono, mas me sentia agitado depois de passar a noite sem dormir. Sentia que precisava de uma bebida.

Procurei vodca na minha estante, mas havia acabado, então acendi o meu fogão de acampamento para preparar um pouco de chá. Enquanto eu fazia isso, o meu vizinho do lado bateu à minha porta levemente.

— Você não está dormindo? Posso entrar?

— Sim, claro! Entre! É um prazer vê-lo. Eu só estava fazendo um pouco de chá. Estou quase congelando e não tenho nenhuma vodca.

— Vou buscar um pouco de vodca, então. Eu também gostaria de uma bebida. Não dormi a noite inteira

Quando ele voltou, trouxe uma garrafa já bastante vazia.

— Isso mal basta para duas pessoas, mas é só o que tenho — ele disse.

— É o suficiente. Você vai ter de me desculpar, não tenho nada a lhe oferecer para acompanhar a bebida.

— Nós não precisamos de nada. Vamos beber como se bebe em Murmansk, com “língua salgada” como aperitivo.

Em Murmansk, mantimentos eram muito escassos e difíceis de obter. Quando não tinham mais nada, os habitantes colocavam uma pitada de sal na língua depois de beber e faziam piada com isso dizendo que estavam comendo língua salgada com sua vodca.

Depois de bebermos a vodca e o chá quente, ficamos mais aquecidos e calmos.

— Eu tive visitantes esta noite—meu vizinho disse, olhando para mim de modo significativo.

— Eu também — respondi.

— Eles ficaram aqui cerca de quatro horas, e acabaram de sair. Veja a bagunça que deixaram

— Todos receberam a visita deles, a não ser o Daniloff; acho que o deixaram em paz porque ele é comunista. Você conhece o meu alojamento —não há nada lá a não ser uma cama e um banco, daí eles quebraram o piso. Eles levaram o meu relógio de prata. Eu comprei o relógio em 1910 na Noruega. Levaram um suéter velho do Vasily Ivanovitch e um par de meias da esposa dele, alegando que essas coisas eram contrabando. Ele estava assustado demais para protestar, mas a mulher dele tentou argumentar, dizendo que as coisas não eram contrabando — que ela havia comprado as meias um ano atrás num leilão na alfândega, e que o seu marido havia herdado o suéter. Mesmo assim, eles levaram as coisas. Entregaram-me um recibo pelo meu relógio. Você acha… que eu posso me meter em encrenca por causa disso? Todo mundo aqui sabe que eu já tinha esse relógio desde antes da guerra.

Eu me senti melhor depois de ouvir essa história. Talvez aqueles homens estivessem apenas buscando evidências de contrabando, afinal.

É claro que foi uma ação revoltante e estúpida; mas nós vivíamos perto de um porto onde navios estrangeiros atracavam, trazendo carvão e sal, por isso havia a possibilidade de contrabando. E a batida policial foi muito estranha. Eles não levaram um único documento e mal espiaram os manuscritos sobre a minha mesa.

Ah, a eterna desconfiança soviética! Infelizmente, algumas horas mais tarde eu soube que havia sido otimista demais.

Scherbakoff, criador da companhia de pesca que recebeu o nome de Companhia Estatal de Pesca do Norte, e Krotoff, membro do Conselho de Administração dessa companhia e administrador da frota pesqueira — ambos colegas meus aqui em Murmansk — haviam sido presos durante a noite.

As casas de todos os funcionários não comunistas da companhia, independentemente do seu tempo de serviço, foram revistadas e na maioria dos casos os homens do GPU se mostraram bastante rudes; em dois lugares eles haviam arrebentado o piso.

Estava claro que o GPU de Murmansk se preparava para um grande “caso”. O esmero na busca e a destruição de assoalhos destinavam-se a mostrar que o GPU tinha fortes evidências contra as pessoas cujas casas foram revistadas.

O grande número de batidas policiais indicava que toda a nossa organização seria atingida. A prisão dos líderes da companhia provava que o GPU estava à procura de algo grande.

Todos na URSS sabem que qualquer pessoa pode ser jogada na prisão mesmo sendo inocente; assim, todos nós vivíamos com o mesmo temor em mente — quando nossa vez vai chegar

 Tal atitude tendia, sem sombra de dúvida, a minar a eficiência do nosso trabalho. Nós tínhamos a tênue esperança — ou, mais precisamente, nos convencíamos de que havia essa esperança — de que essas batidas e prisões fossem iniciativa apenas do GPU de Murmansk, e que quando Moscou se inteirasse do caso ordenaria o fim dessas ações, para que não prejudicasse seriamente as operações na indústria da pesca.

No momento, entretanto, O GPU não dava trégua. Um a um, todos os funcionários da nossa empresa — a Companhia Estatal de Pesca do Norte, da qual eu era diretor de pesquisa — foram interrogados e, apesar de terem sido obrigados a manter sigilo a respeito do assunto tratado no interrogatório, sob pena de reclusão no campo de concentração de Solovki caso esse sigilo fosse quebrado, as notícias se espalharam rapidamente.

Dessa maneira, em poucos dias todos já sabiam que o GPU procurava provas de atividade de “sabotagem”.

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