[RESUMO] Jovem, socialista, nascido em Uganda, filho de indianos, Zohran Mamdani chacoalhou o mundo político americano ao vencer as primárias democratas para a Prefeitura de Nova York, desbancando oponentes poderosos. Com discurso focado em desigualdade e problemas concretos de uma grande cidade, ele deixou o debate de raça e gênero em segundo plano. Caso vitorioso, Mamdani poderá ser um farol para a esquerda progressista dos EUA, atordoada desde a volta de Trump e desconectada das classes de baixa renda que já foram sua base eleitoral.
“Socialismo”, proclamou Zohran Mamdani na abertura de um vídeo em que ele explicava a essência da ideologia durante sua campanha para deputado estadual em Nova York, em 2020.
A palavra, que no vocabulário político dos Estados Unidos carrega um forte estigma, é tecida em louvores por ele, com a convicção e o didatismo que remetem a um debate fervoroso de centro acadêmico de ciências sociais.
Cinco anos depois, Mamdani, hoje com 33 anos, membro fervoroso do Socialistas Democratas da América (DSA, na sigla em inglês), emergiu de maneira espantosa como candidato democrata à Prefeitura de Nova York. A surpreendente vitória nas primárias para governar a maior cidade dos Estados Unidos marca um ponto de inflexão crucial para o Partido Democrata, que busca redefinir seu caminho após a derrota nacional de 2024.
Para entender a dimensão dessa façanha, é fundamental contextualizar seu principal adversário. Mamdani superou o ex-governador Andrew Cuomo, a própria representação do establishment democrata.
Cuomo, oriundo de uma das mais tradicionais dinastias políticas do estado de Nova York, com décadas de influência e uma abordagem pragmática e centrista, era o favorito natural. Sua imagem, porém, foi abalada por denúncias de assédio sexual e por críticas a sua gestão na pandemia, gerando uma profunda desilusão pública.
Portanto, antes de mais nada, a vitória de Mamdani nas primárias representou uma repulsa clara ao establishment democrata, visto por muitos eleitores como ineficaz ou complacente. Essa elite partidária foi incapaz de conter o avanço de Trump em 2024 e, internamente, havia acolhido e defendido figuras como Cuomo, mesmo após os graves relatos de assédio. A mensagem é clara: a velha guarda não representa mais os anseios de uma parte significativa da base do partido.
Após a derrota de Kamala Harris em 2024, quando as pesquisas indicaram que economia e inflação dominaram as preocupações dos eleitores, o Partido Democrata revelou-se desconectado da classe trabalhadora, que costumava ser sua principal base eleitoral.
Mamdani capitalizou essa insatisfação com uma agenda que promete transporte público gratuito, creches universais, congelamento de aluguéis e supermercados públicos. Nesse sentido, seu discurso se alinha a uma esquerda mais tradicional, focada em questões materiais e desigualdade econômica. Debates sobre identidade de gênero, por exemplo, ficaram em segundo plano.
Desde a vitória de Trump, figuras como Gavin Newsom, governador da Califórnia, e outros democratas centristas e progressistas destacaram publicamente o risco de o partido permanecer distante das demandas econômicas populares, com foco excessivo em debates culturais que, embora válidos, podem alienar eleitores de menor renda e nível educacional.
Nesse sentido, o triunfo de Mamdani sugere que parte da sigla busca reequilibrar essa balança voltando a enfatizar pautas que, historicamente, foram a base do apelo democrata.
Ao examinarmos, contudo, a distribuição demográfica dos eleitores em Nova York, é possível verificar que o socialista conquistou votos expressivos em bairros como Brooklyn e Astoria, onde predominam cidadãos brancos, jovens, com ensino superior e renda média e alta.
Esse perfil é semelhante à base de apoio do PSOL em cidades como Rio e São Paulo, nas quais o partido se sai melhor em enclaves abastados, como Pinheiros ou Botafogo, e pior em áreas periféricas, como Cidade Tiradentes ou Jacarezinho.
Tal como socialistas brasileiros, o candidato democrata enfrenta o desafio de expandir seu apelo para além de uma elite urbana instruída, alcançando comunidades mais diversas e vulneráveis que priorizam demandas práticas, como segurança e empregos.
Dados eleitorais preliminares, divulgados pelo jornal New York Times, mostram que Mamdani teve desempenho fraco entre eleitores negros e latinos, que formam a espinha dorsal do voto democrata e valorizam soluções imediatas para questões como criminalidade e estagnação econômica.
Por enquanto, ele tem tido mais facilidade em pregar aos convertidos em cafés de Brooklyn do que em construir coalizões em bairros como o Bronx. Essa base estreita ameaça limitar sua relevância em uma cidade que exige amplo consenso e que em passado não muito distante elegeu figuras como Rudolph Giuliani e Michael Bloomberg.
Dialogar com eleitores mais pobres e menos escolarizados será apenas um dos diversos desafios que o socialista enfrentará nas eleições de novembro. Suas propostas são ambiciosas e exigiriam um ambiente político muito mais favorável para serem implementadas, tanto em nível municipal quanto estadual.
A realocação de recursos para transporte público gratuito ou para a criação de supermercados públicos é um grande problema em um contexto de orçamento municipal já sobrecarregado por gastos com saúde e educação.
Mamdani aposta em aumentar a tributação sobre os mais ricos, uma ideia que, embora popular em sua base progressista, enfrenta resistências significativas. Experiências como a da França, onde um imposto sobre grandes fortunas, introduzido em 2012, levou à fuga de capitais e acabou revogado em 2017 após arrecadar menos que o esperado, mostram a dificuldade de executar essa estratégia.
Além disso, adversários do candidato poderão facilmente chamar suas propostas de “radicais” e “extremistas”, com o objetivo de espantar possíveis apoiadores.
A despeito disso, a força de Mamdani está em sua capacidade de oferecer uma visão política clara, algo que falta aos democratas desde a derrota de 2024. Ao evitar a armadilha de uma oposição reativa a Trump, aponta um caminho propositivo que, certo ou errado, dá ao partido uma direção distinta em meio à sua crise de identidade.
Mesmo que suas ideias sejam inviáveis, ele força os democratas a enfrentarem questões concretas para a cidade, muitas vezes negligenciadas. Por outro lado, a falta de um plano claro de implementação sugere uma desconexão com as realidades da governança.
O teste decisivo virá na eleição geral de 4 de novembro de 2025, contra Eric Adams, prefeito em exercício que aposta na lei e ordem e busca a reeleição como candidato independente; Curtis Sliwa, republicano com apelo populista; Jim Walden, independente moderado; e possivelmente Cuomo, que cogita uma candidatura avulsa, sem partido.
Além de Mamdani, outras jovens lideranças democratas também serão testadas nas urnas em novembro. Abigail Spanberger, candidata ao governo da Virgínia, e Mikie Sherrill, que concorre em Nova Jersey, representam vertentes centristas e pragmáticas do partido.
Spanberger, ex-agente da CIA e ex-deputada estadual, aposta em infraestrutura, custo de vida e estabilidade política, evitando ataques diretos a Trump e se apresentando como alguém capaz de unir a classe trabalhadora rural e suburbana. Já Sherrill, ex-pilota da Marinha e ex-procuradora federal, venceu a primária democrata com apelo a suburbanos preocupados com inflação, impostos e a aposta em uma gestão eficiente.
O que está em jogo, portanto, é mais que a prefeitura da maior cidade americana: é o futuro ideológico e estratégico dos democratas em nível nacional.
Se Zohran Mamdani triunfar em novembro, seu governo em Nova York funcionará como um experimento prático de grande escala do que pode ser um novo Partido Democrata, testando a viabilidade de pautas socialistas em um grande centro urbano. Será um modelo para a esquerda progressista em todo o país.
Se ele fracassar na eleição geral, o partido pode ser forçado a buscar caminhos mais convencionais e a repensar a viabilidade eleitoral de uma guinada tão acentuada à esquerda.