Escrito em 1920 e proibido na União Soviética por décadas, “Nós”, de Eugene Zamiátin (1884-1937), é uma das primeiras grandes distopias da literatura moderna. Ambientado em um futuro totalitário no qual o Estado controla cada aspecto da vida dos cidadãos, o romance é narrado por D-503, um engenheiro leal ao regime que se vê abalado ao se apaixonar por uma mulher ligada a uma resistência clandestina.
Zamiátin, um autor de pensamento independente que rompeu com os bolcheviques e desafiou a censura soviética, usou sua obra para criticar sistemas opressores e a supressão da individualidade em nome de um suposto bem coletivo. Seu livro foi publicado primeiro no Ocidente, em 1924, e serviu como um alerta profético sobre os perigos do totalitarismo, antecipando os horrores das ditaduras do século XX.
Não à toa, a obra influenciou diretamente clássicos como “Admirável Mundo Novo” (1932), de Aldous Huxley, e “1984” (1949), de George Orwell. Este último, inclusive, escreveu uma resenha sobre o romance de Zamiátin, publicada em 1946 no jornal britânico Tribune — e que foi incluída como prefácio na nova edição brasileira de “Nós”, recém-lançada pelo selo Avis Rara. Leia o texto de Orwell a seguir.
Vários anos depois de saber de sua existência, finalmente consegui um exemplar de “Nós”, de Zamiátin, que é uma das curiosidades literárias desta era da queima de livros. Olhando para o 25 Years of Soviet Russian Literature [“25 Anos de Literatura Russa Soviética”], de Gleb Struve (1898-1985), descobri que sua história foi como segue.
Zamiátin, que morreu em Paris em 1937, foi um romancista e crítico russo que publicou vários livros antes e depois da Revolução. “Nós” foi escrito por volta de 1923 e, embora não seja sobre a Rússia e não tenha nenhuma ligação direta com a política contemporânea — é uma fantasia que trata do século XXVI —, teve sua publicação recusada na condição de que era ideologicamente indesejável.
Uma cópia do manuscrito saiu do país, e o livro apareceu em traduções para inglês, francês e tcheco, mas nunca em russo. A tradução inglesa foi publicada nos Estados Unidos e nunca consegui obter uma cópia: mas existem cópias da tradução francesa (o título é Nous Autres), e finalmente consegui uma emprestada.
Tanto quanto posso julgar, não é um livro de primeira ordem, mas é certamente incomum, e é surpreendente que nenhuma editora inglesa tenha sido suficientemente diligente para reeditá-lo.
A primeira coisa que alguém notaria sobre “Nós” é o fato — nunca apontado, creio eu — de que o “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley (1894-1963), deve ter sido parcialmente derivado dele, Ambos os livros tratam da rebelião do espírito humano primitivo contra um mundo racionalizado, mecanizado e indolor, e ambas as histórias supostamente acontecerão daqui a cerca de 600 anos.
A atmosfera dos dois livros é semelhante e, grosso modo, trata-se do mesmo tipo de sociedade que está sendo descrita, embora o livro de Huxley mostre menos consciência política e seja mais influenciado por teorias biológicas e psicológicas recentes.
No século XXVI, na visão de Zamiátin, os habitantes da Utopia perderam tão completamente a sua individualidade que são conhecidos apenas por números. Vivem em casas de vidro (isso foi escrito antes da invenção da televisão), o que permite à polícia política, conhecida como “Guardiões”, supervisioná-los com mais facilidade.
Todos usam uniformes idênticos, e um ser humano é comumente referido como “um número” ou “um unif” (uniforme). Eles vivem de alimentos sintéticos e sua diversão habitual é marchar em grupos de quatro enquanto o hino do Estado Único é tocado nos alto-falantes.
Em intervalos determinados, têm permissão para baixar as cortinas em torno de seus apartamentos de vidro durante uma hora (conhecida como “a hora do sexo”). É claro que não existe casamento, embora a vida sexual não pareça ser completamente promíscua. Para fazer amor, todos têm uma espécie de livreto de racionamento com ingressos cor-de-rosa, e o parceiro com quem a pessoa passa uma de suas horas sexuais designadas assina o talão.
O Estado Único é governado por uma personagem conhecida como O Benfeitor, que é reeleito anualmente por toda a população, sendo a votação sempre unânime. O princípio orientador do Estado é que felicidade e liberdade são incompatíveis.
No Jardim do Éden, o homem era feliz, mas, na sua loucura, exigiu liberdade e foi expulso para o deserto. Agora, o Estado Único restaurou a sua felicidade ao retirar-lhe a liberdade.
Até agora, a semelhança com “Admirável Mundo Novo” é impressionante. Mas, embora o livro de Zamiátin seja menos bem elaborado — com um enredo bastante fraco e episódico, que é demasiado complexo para ser resumido —, tem um ponto político que falta ao outro.
No livro de Huxley, o problema da “natureza humana” é, em certo sentido, resolvido, porque pressupõe que, por meio do tratamento pré-natal, dos medicamentos e da sugestão hipnótica o organismo humano pode ser aperfeiçoado da forma que se desejar.
Um trabalhador científico de primeira linha é tão facilmente produzido quanto um semi-idiota Epsilon [os piores de todos os grupos de castas sociais] e, em ambos os casos, os vestígios de instintos primitivos, como o sentimento maternal ou o desejo de liberdade, são facilmente tratados.
Ao mesmo tempo, não é dada nenhuma razão clara para que a sociedade deva ser estratificada na forma elaborada como foi descrita. O objetivo não é a exploração econômica, mas o desejo de intimidar e dominar também não parece ser um motivo.
Não há fome de poder, nem sadismo, nem dureza de qualquer tipo. Os que estão no topo não têm motivos fortes para permanecer no topo e, embora todos sejam felizes de uma forma vazia, a vida tornou-se tão inútil que é difícil acreditar que tal sociedade possa perdurar.
O livro de Zamiátin é, em geral, mais relevante para a nossa situação Apesar da educação e da vigilância dos Guardiões, muitos dos antigos instintos humanos ainda existem. O narrador da história, D-503, que, embora seja um engenheiro talentoso, é uma pobre criatura convencional, uma espécie de Billy Brown utópico da cidade de Londres, fica constantemente horrorizado com os impulsos atávicos que se apoderam dele.
Ele se apaixona (isso é um crime, é claro) por uma certa I-330, que é membro de um movimento de resistência clandestino e que consegue, por algum tempo, levá-lo à rebelião. Quando a rebelião irrompe, parece que os inimigos do Benfeitor são de fato bastante numerosos, e essas pessoas, além de conspirarem para derrubarem o Estado, chegam, inclusive, a se entregar, no momento em que as cortinas são fechadas, a vícios como fumar cigarros e beber álcool.
D-503 é finalmente salvo das consequências de sua própria loucura. As autoridades anunciam que descobriram a causa dos distúrbios recentes: é que alguns seres humanos sofrem de uma doença chamada imaginação.
O centro nervoso responsável pela imaginação já foi localizado e a doença pode ser curada por tratamento com raios X. D-503 é submetido à operação, após a qual é fácil para ele fazer o que sempre soube que deveria fazer — isto é, trair os seus confederados à polícia. Com total serenidade, ele observa I-330 sendo torturada por meio de ar comprimido sob um sino de vidro:
Ela ficou olhando para mim, enquanto agarrava firmemente os braços da cadeira, até fechar completamente os olhos. Eles, então, a retiraram de lá, rapidamente, com a ajuda de eletrodos, fizeram-na recuperar os sentidos, e depois a colocaram, novamente, sob a Campânula Repetiram isso três vezes, e, mesmo assim, ela não disse uma única palavra.
Outros, que foram trazidos com essa mulher, revelaram-se mais honesto: muitos deles começaram a falar logo na primeira vez. Amanhã subirão os degraus da Máquina do Benfeitor.
É fácil ver por que a publicação do livro foi recusada. A seguinte conversa (que eu resumi um pouco) entre D-503 e I-330 teria sido suficiente para colocar os lápis azuis [lápis tradicionalmente usado por um copidesque ou subeditor para mostrar correções em uma cópia escrita] em funcionamento:
— Você percebe que o que você está sugerindo é uma revolução? — É claro, é uma revolução Por que não?
— Porque não pode haver uma revolução. Nossa revolução foi a última e nunca poderá haver outra. Todo mundo sabe.
— Meu querido, você é matemático: diga-me, qual é o último número?
— Como assim, o último número?
— Bem, então, o maior número!
— Mas isso é um absurdo Os números são infinito. Não pode haver um último.
— Então por que você fala sobre a última revolução?
Existem outras passagens semelhantes. Pode muito bem acontecer, no entanto, que Zamiátin não pretendesse que o regime soviético fosse o alvo especial da sua sátira.
Ao escrever por volta da época da morte de Lênin (1870-1924), ele não pode ter tido em mente a ditadura de Stálin (1878-1953), e as condições na Rússia em 1923 não eram tais que alguém se revoltasse contra elas, alegando que a vida estava se tornando demasiado segura e confortável.
O que Zamiátin parece visar não é a um país em particular, mas sim aos objetivos implícitos da civilização industrial. Não li nenhum de seus outros livros, mas soube por Gleb Struve que ele passou vários anos na Inglaterra e escreveu algumas sátiras contundentes sobre a vida inglesa.
Fica evidente em “Nós” que ele tinha uma forte inclinação para o primitivismo. Preso pelo governo czarista em 1906, e depois preso pelos bolcheviques em 1922, no mesmo corredor da mesma prisão, ele tinha motivos para não gostar do regime político sob o qual viveu, mas o seu livro não é simplesmente a expressão de uma queixa.
Na verdade, é um estudo da Máquina, o gênio que o homem impensadamente deixou sair de sua garrafa e não consegue recolocar.