Em 16 de setembro último, esta Gazeta publicou artigo no qual analisamos o que era então a possibilidade de que Donald Trump fosse eleito presidente dos Estados Unidos e endossasse o projeto de lei da senadora Cynthia Lummis (Republicanos/Wyoming) que prevê o estabelecimento de uma Reserva Nacional Estratégica de Bitcoin.
Trump foi eleito presidente em 5 de novembro e não apenas endossou o PL de Lummis, como também indicou David Sacks como principal autoridade (“czar”, no anedótico jargão político norte-americano) para temas de criptoativos e inteligência artificial. Em 12 de dezembro, o presidente-eleito concedeu entrevista à rede CNBC e confirmou que criará a mencionada reserva estratégica.
A declaração de Trump deflagrou (mais) uma onda de euforia nos mercados spot, futuros e de fundos de índice cotados (ETFs) de Bitcoin (BTC). Seis dias depois, o embalo foi interrompido por um comentário mal-interpretado de Jerome Powell, presidente da Reserva Federal (equivalente norte-americano do Banco Central), segundo quem o Fed “não pode possuir bitcoins”, pois eventual mudança da legislação corresponderia ao Congresso dos EUA.
A impossibilidade legal de que a Reserva Federal atualmente entesoure BTCs é — ou deveria ser — uma obviedade: se não fosse o caso, o projeto de lei da senadora Lummis seria desnecessário. A principal modificação legal visando a permitir que o Fed entesoure BTCs diz respeito a três dispositivos do Federal Reserve Act, lei de 1913 que instituiu a Reserva Federal, quais sejam os que tratam: i) das competências da Fed e dos colaterais admissíveis; ii) dos ativos que a Reserva Federal pode entesourar; e iii) dos ativos que lastreiam o meio circulante (dólar norte americano – USD).
Não se quer dizer, com isso, que eventual modificação da lei institutiva do Fed será simples, o que de resto rarissimamente ocorre em uma república constitucional de processo legislativo complexo como os Estados Unidos. Há, contudo, uma convergência de fatores que dificilmente se repetirá nos curto e médio prazos: um presidente pró-BTC e um Congresso com cerca de 47% de seus membros (250 dos 435 deputados e 100 senadores, segundo o canal Fox Business) favoráveis à adoção de leis integrativas de BTC ao sistema financeiro norte-americano.
Partindo da premissa de que a Reserva Estratégica de Bitcoin norte-americana será constituída, cumpre analisar suas possibilidades de funcionamento, com base tanto no projeto de lei da senadora Lummis quanto em eventuais modificações da lei institutiva do Fed.
Uma reserva estratégica é constituída por estoque de recurso crítico que pode ser utilizada em tempos de crise (monetária ou financeira, sem prejuízo de outros tipos) ou em caso de choques de oferta e/ou de mau-funcionamento das cadeias de fornecimento (aplicável sobretudo a commodities energéticas como petróleo bruto, óleo diesel, gasolina e urânio, alimentícias como grãos e industriais metálicas como alumínio, cobre e terras raras, entre outras).
Essas funções clássicas desempenhadas pelas reservas estratégicas não afastam as possibilidades de que estoques de commodities sem precedentes históricos sirvam a propósitos ainda não registrados. Convém aqui esclarecer que o Bitcoin é considerado uma commodity digital pela Securities and Exchange Comission (SEC, equivalente norte-americano da Comissão de Valores Mobiliários), essencialmente porque sua emissão não é controlada por um ou mais agentes centralizados ou com personalidade jurídica (caso em que seriam securities).
Como tratado no artigo de setembro, o projeto de Lummis prevê a aquisição de 200 mil BTCs anuais ao longo de cinco anos, perfazendo um milhão de unidades. Somados aos atuais 210 mil BTCs já em posse do governo dos Estados Unidos, a Reserva Estratégica, consoante a proposta original da senadora de Wyoming, conteria 1,21 milhão de unidades em 2030, ou 5,7% do estoque total de 21 milhões (dos quais cerca de 20,5 milhões estarão em circulação no fim de 2030).
É um belo plano no papel, mas de difícil execução: as aquisições de tais volumes trariam instabilidade excessiva se realizadas no mercado spot, ainda que de maneira deliberadamente difusa, e há dúvidas bem fundamentadas quanto à possibilidade de aquisição de 200 mil BTCs anuais no mercado OTC (over-the-counter) sem que a cotação da commodity, em USD e outras moedas fiduciárias, seja significativamente afetada, já que a movimentação dos BTCs entre carteiras seria pública no blockchain.
Além disso, é oportuno ter em vista que a Reserva Estratégica provavelmente será estabelecida por lei, de modo que suas aquisições de Bitcoin (custeadas pela liquidação parcial de reservas de ouro após a atualização dos valores contábeis das reservas norte-americanas do metal, tema que abordamos no artigo de setembro, e, alternativa ou complementarmente, pela emissão de dívida) terão que atender a requisitos de transparência, não podendo, portanto, operar como um slush fund (fontes secretas de recursos utilizadas por diversos serviços de inteligência para financiar atividades frequentemente ilegais).
Volatilidade
Um grupo minoritário de juristas norte-americanos, contudo, argumenta que Trump poderia se valer de dos poderes presidenciais estabelecidos pelo artigo II da Constituição dos Estados Unidos para criar a Reserva Estratégica por meio de ordem executiva (executive order) que instruiria o Fundo de Estabilização Cambial do Departamento do Tesouro (Treasury’s Exchange Stabilization Fund) à compra dos BTCs a serem entesourados por no mínimo vinte anos.
Conquanto os críticos de uma Reserva Estratégica de Bitcoin progressivamente reconheçam a viabilidade legal de seu estabelecimento, muitos ainda sustentam que a commodity não tem “valor intrínseco”. Trata-se de um equívoco quase ontológico, já que valor, na acepção da Escola Austríaca de economia, existe exclusivamente desde a perspectiva individual humana, que o confere com base na utilidade marginal: um estoque de alimentos, por exemplo, não tem “valor intrínseco” para um ou mais indivíduos que já disponham de abundância dos mesmos alimentos, e a possibilidade de comercializar tais excedentes teria que levar em conta a perecibilidade dos estoques, os custos de armazenagem, transporte e seguro, entre outros.
No mesmo ensejo, a leitura marxista da teoria do valor-trabalho, segundo a qual o trabalho é o elemento que confere “valor intrínseco” a um determinado bem econômico, ignora que trabalho pode ser empregado em atividades que não geram qualquer valor, como o economista austríaco Eugen von Böhm-Bawerk bem demonstrou ao comparar que quantidades similares de trabalho empregadas na confecção de tortas de cereja e de lama resultariam em valores bem diferentes…
Outra crítica tange à volatilidade do Bitcoin, medida em dólares norte-americanos e outras moedas fiduciárias. O leitor que acessar um portal com escala linear do preço do BTC em USD desde 2010 certamente observará tremenda volatilidade no preço da commodity, mas essa volatilidade não seria muito diferente daquela observada na relação entre o ouro e o marco alemão entre 1921 e 1923.
No caso do par BTC/USD, a volatilidade é sobremaneira reduzida quando se substitui a escala linear pela logarítmica, que permite complementar a percepção de que o BTC se apreciou cerca de 26500% em relação ao dólar desde 2014 com outra que expõe a migração de valor de uma moeda inflacionária de estoque virtualmente infinito e politicamente controlado (USD) para uma progressivamente deflacionária de estoque finito e politicamente neutra (BTC).
É possível, nesse contexto, que a volatilidade do BTC, ainda que se reduza expressivamente nos próximos anos e décadas, constitua um dos fatores (mas não o principal) responsáveis por fazer da commodity sobretudo reserva de valor e unidade contábil, mas não meio de troca, que deve ser estável. Por outro lado, ainda que BTC venha a ter volatilidade similar à do ouro ou à de imóveis corporativos na ilha de Manhattan, em Nova Iorque, seus detentores — individuais, jurídicos ou soberanos — provavelmente não pagarão cafés, cervejas ou mesmo contas de restaurante em satoshi (a subunidade do BTC; cada BTC é integrado por 100 milhões de satoshi) por motivos similares àqueles que os levam a não pagar pelos mesmos itens com uma fração de ouro ou de um edifício empresarial.
Risco para o dólar?
A probabilidade de que o Bitcoin se consolide como reserva de valor e, futuramente, unidade contábil, põe em xeque os argumentos daqueles que se dizem contrários ao estabelecimento de reservas estratégicas da commodity, nos Estados Unidos e em outros países, porque tais estoques acarretariam a obsolescência do USD e de outras moedas fiduciárias.
O dólar só desempenha função de reserva de valor para nacionais de países com moedas hiperinflacionárias, como o Venezuela e o Zimbábue, que buscam converter quantias em moedas locais USD a fim de evitar a pulverização de seus poderes de compra. Nesse contexto, a Reserva Estratégica de BTC dos EUA, longe de enfraquecer o dólar norte-americano, possivelmente sinalizará ao mundo que o governo daquele país vê na commodity não um concorrente de sua moeda, mas um ativo a ser integrado ao sistema financeiro norte-americano com vistas a fortalecer o dólar.
Tal leitura adquire particular urgência quando se leva em conta a possibilidade de que países que os Estados Unidos veem como antagonistas, exemplos dos quais são China e Rússia, podem estar já acumulando BTCs, sem que tenham dado publicidade às hipotéticas iniciativas. Nesse caso, o acúmulo de BTCs em uma reserva soberana perfaz importante fator de dissuasão no contexto de investidas para erodir a presença internacional do dólar norte-americano.
Reserva brasileira de Bitcoin
No Brasil, a apresentação, em novembro, de projeto de lei 4501/2024, do deputado federal Eros Biondini (PL/MG), que dispõe sobre a formação de Reserva Soberana de Bitcoins (RESBit), é um passo importantíssimo para que o tema possa ser tratado com a relevância que lhe corresponde pelo Congresso Nacional.
Não nos parece, contudo, que as atuais circunstâncias econômicas e políticas do País permitirão que o projeto e, em sentido mais amplo, o temário, sejam debatidos, no curto prazo, pelo Congresso Nacional e pela sociedade brasileira.
O que não deixa de ser ao mesmo tempo desanimador e preocupante, já que, se outros países constituírem suas respectivas reservas, a demanda por Bitcoin concorrerá para majorar seu preço em USD e em outras moedas fiduciárias.
Como a cotação de BTC em USD informa o preço da commodity em real brasileiro (com base na cotação USD/BRL, à qual deve ser acrescido prêmio variável, decorrente da liquidez relativamente baixa das corretoras brasileiras de BTC), poderão sobrevir dificuldades para que o Estado brasileiro (e também particulares) adquiram BTCs em reais, particularmente se a depreciação do BRL em relação ao USD se aprofundar.
Há crescente insatisfação de libertários e anarcocapitalistas com a adoção – por eles definida como “sequestro” – do Bitcoin por instituições financeiras e Estados nacionais. A ideia fundamental de Satoshi Nakamoto, criador do protocolo BTC, e seus contemporâneos mais próximos, entre 2009 e 2010, seria promover a separação definitiva entre Dinheiro e Estado.
É uma frustração compreensível, mas há precedentes históricos aos montes, o mais destacado dos quais talvez seja a sintetização da pólvora, por alquimistas chineses do século IX, para fins medicinais, tendo a invenção, quase quatro séculos depois, deixado de servir a propósitos precipuamente medicinais para se tornar um insumo indispensável à guerra.
Nesse mesmo diapasão, os “puristas” de inspiração libertária e anarcocapitalista deverão ficar ainda mais desapontados quando começarem a emergir manifestações do emprego de BTC para propósitos não financeiros, tema pioneiramente desenvolvido por Jason Lowery, major da Força Espacial dos EUA, em dissertação de mestrado intitulada “Softwar: A Novel Theory on Power Projection and the National Strategic Significance of Bitcoin”, defendida em fevereiro de 2023 no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). A dissertação de Lowery, que teve seu domínio público suspenso por determinação do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, será comentada em um nosso artigo futuro.
Marcos Degaut, cientista político, é doutor em segurança internacional e pesquisador sênior na University of Central Florida (EUA); ex-Secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa e ex-Secretário Especial Adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.
Lindolpho Cademartori, diplomata de carreira, é mestre em diplomacia pelo Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Suas opiniões são estritamente pessoais e não necessariamente refletem aquelas do MRE.