Tabata Amaral, Rafael Brito e Raphael Gouvea *
Não há desvio, não há pedalada, não há crime de responsabilidade. O repasse dos R$ 6 bilhões do Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo (FGEDUC) para o Fundo de Incentivo à Permanência no Ensino Médio (Fipem) foi feito com base em duas leis aprovadas pelo Congresso Nacional, que autorizaram expressamente essa transação. O próprio TCU, em 2016, recomendou que transferências de recursos entre fundos devem ser precedidas de alterações nas leis que os regem por meio de norma específica — e foi exatamente isso que o governo fez.
A tese central do TCU para bloquear os R$ 6 bilhões aportados pelo FGEDUC, fundo garantidor dos contratos do Fies firmados até o segundo semestre de 2017, no Fipem, fundo que operacionaliza o Pé-de-Meia, baseia-se no argumento de que esta transação entre os fundos requer autorização do Congresso Nacional na Lei Orçamentária Anual (LOA). Ou seja, na visão do TCU, o procedimento correto seria o FGEDUC devolver os R$ 6 bilhões para Conta Única do Tesouro Nacional (receita primária da União) e depois o governo integralizar os R$ 6 bilhões em cotas no Fipem (despesa primária da União) via orçamento geral da União. Em ambos os procedimentos – transferência direta entre fundos ou transferência passando pelo orçamento – o impacto primário da transação é nulo, ou seja, em nada afeta a meta fiscal do governo federal. A principal diferença entre os dois procedimentos reside no fato de que a despesa primária para integralizar o Fipem via orçamento entra no teto de despesa do arcabouço fiscal. Diante disso, o governo já se comprometeu a trazer o Pé-de-Meia para dentro do orçamento a partir da LOA de 2026, seguindo a recomendação do TCU já no próximo ano.1
Mas por que o TCU defende que toda integralização do Fipem passe pelo orçamento? Primeiro, o § 1º do Art. 15 da Lei 14.818 de 2024 – lei que instituiu o Pé-de-Meia – diz que “o poder Executivo deverá compatibilizar a quantidade de incentivos financeiros de que trata esta Lei e de estudantes que o recebem com as dotações orçamentárias existentes”. Segundo, o Art. 26 da Lei de Responsabilidade Fiscal diz que “a destinação de recursos para, direta ou indiretamente, cobrir necessidades de pessoas físicas ou déficits de pessoas jurídicas deverá ser autorizada por lei específica, atender às condições estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias e estar prevista no orçamento ou em seus créditos adicionais.”
Como iremos mostrar a seguir, todos os procedimentos adotados pelo poder Executivo até o momento atendem a esses dois dispositivos legais, além de seguir recomendação do próprio TCU em Acórdão de 2016 ao julgar as contas da presidenta Dilma Rousseff de 2015. Ou seja, não há nada de errado na integralização direta do FGEDUC no Fipem. Primeiro, a Lei do Pé-de-Meia diz claramente que “é autorizada a transferência, nos termos da legislação, para o fundo” que operacionaliza o programa (caput Art. 11) de “valores não utilizados para garantia de operações com recursos do FGEDUC” (inciso II do Art. 11). Além disso, a Lei 14.995 de 2024 fez duas alterações na legislação do FGEDUC: (i) instituiu como finalidade do FGEDUC “destinar recursos financeiros para a concessão de incentivo financeiro-educacional de que trata a Lei nº 14.818, de 16 de janeiro de 2024 (Programa Pé-de-Meia)” e (ii) autorizou a transação direta do FGEDUC para o FIPEM ao dispor que o FGEDUC “integralizará cotas no Fundo de Incentivo à Permanência no Ensino Médio (Fipem)” no montante de até R$ 6 bilhões “observado, no FGEDUC, o montante de recursos financeiros disponíveis ainda não vinculados às garantias já contratadas.”2. Ou seja, a Lei 14.995 de 2024 não autorizou a devolução de cotas do FGEDUC para União, ela determinou a integralização direta no FIPEM. Um último ponto a se observar é que a integralização dos recursos do FGEDUC foram registrados como despesa nos orçamentos de anos anteriores, de modo que os recursos disponíveis do fundo já passaram pelo orçamento federal como deseja o TCU. Assim, as Leis nos 14.818 e 14.995 de 2024 garantem que a integralização direta atende tanto o Art. 15 da Lei do Pé-de-Meia quanto a Lei de Responsabilidade Fiscal uma vez que a transação foi autorizada por lei específica e os recursos do FGEDUC foram integralizados via orçamento ou em seus créditos adicionais em anos anteriores. Por fim, é interessante observar que a transação direta entre os fundos tal como descrita também segue diretamente a recomendação do Acórdão 1.497/2016 do TCU que diz que “a única forma possível de desvincular receitas de fundos especiais é a edição de outra norma específica que altere a lei de criação de cada fundo”3 (pág. 80). Isto é exatamente o que foi legislado pelas Leis nos 14.818 e 14.995 de 2024. Em síntese: não há pedalada ou crime de responsabilidade quando o governo federal segue exatamente aquilo que está previsto em Leis aprovadas pelo Congresso Nacional.
Diante da inexistência de ilegalidades, tanto em relação a fraudes e desvios de recursos quanto aos procedimentos orçamentários adotados, a decisão do TCU prevista para esta quarta-feira pode tomar dois caminhos. Um deles, o da conciliação, permite ajustes técnicos e prazos razoáveis para readequação. O outro, da manutenção do bloqueio, ignora a dimensão social e os impactos educacionais dessa medida. O efeito prático do bloqueio, caso mantido, é alarmante. Cerca de 4 milhões de jovens de baixa renda correm o risco de não receber os depósitos do Pé-de-Meia já a partir do dia 20 de fevereiro. O programa, que condiciona os pagamentos à permanência na escola, visa justamente reduzir os índices de evasão no ensino médio, um problema crônico no Brasil. Interromper esse fluxo de recursos não apenas desestrutura a política pública, mas também aumenta a vulnerabilidade social desses estudantes, que dependem do benefício para seguir estudando. No Brasil, onde a cada ano milhares de jovens abandonam a escola por falta de condições financeiras, impedir a continuidade de um programa como o Pé-de-Meia não é apenas uma questão burocrática — é um risco concreto para o futuro de uma geração.
1 Caso o procedimento sugerido pelo TCU fosse adotado já em 2025, o governo teria que cortar R$ 6 bilhões de despesas em outras políticas públicas de imediato. Um ajuste tão elevado em espaço tão curto de tempo é inviável pois exige alterações legislativas em diversas políticas públicas para acomodar essa inclusão do Pé-de-Meia no orçamento. Por isto, a Lei Complementar 203 de 2023 determinou que a primeira integralização do Fipem realizada em dezembro daquele ano não fosse contabilizada nos limites de despesas do arcabouço fiscal.
2 Inclusão dos §§ 6º-A e 6º-A no artigo art. 7º da Lei nº 12.087, de 11 de novembro de 2009 pela Lei 14.995 de 2024.
3 Acórdão 1.497/2016 – Plenário. Processo 008.389/2016-0. Contas do Presidente da República. Julgado em 15/06/2016.
* Tabata Amaral é deputada federal (PSB-SP) em 2° mandato. É autora do Pé-de-Meia, da Lei da Dignidade Menstrual, do Marco Legal do Ensino Técnico e do Plano de Adaptação às Mudanças Climáticas. Formada em Ciência Política e Astrofísica por Harvard, foi candidata à prefeita de São Paulo em 2024.
Rafael Brito é administrador, empresário e ex-secretário da Educação de Alagoas. Criou programas como Cartão Escola 10, Vem que Dá Tempo e Mais Merenda. Atualmente é deputado federal pelo MDB de Alagoas e atual presidente da bancada da Educação no Congresso Nacional.
Raphael Gouvea é doutor em Economia pela Universidade de Massachusetts. Pesquisador (cedido) do Ipea e secretário parlamentar na Câmara dos Deputados.
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