Gosto de lembrar um caso que me aconteceu há muitos anos quando passava de carro por volta da meia-noite ao lado do estádio do Pacaembu. A pessoa que me acompanhava viu uma bengala de cego rolando pelo meio da rua e me alertou. Paramos o carro e percebemos que um grupo de cegos, todos risonhos e muito alegres, vinha descendo pela calçada. A bengala era de um deles. Logo descobrimos que eram integrantes de um time de futebol de salão que estavam hospedados no próprio estádio. Tinham saído para um barzinho na noite de sexta-feira e acabaram descendo pelo lado errado.
Para facilitar a chegada deles à entrada correta, convidamos todos a entrar no carro – eles acharam divertido fazer a pequena viagem amontoados no banco traseiro. Nesse pequeno trajeto, um deles, já meio “alto”, repetia: “Não quero nem ver a cara do treinador amanhã”, ao que os outros secundavam: “Nem eu!”. O caso ilustra um dado interessante da linguagem: o sentido literal nem sempre é o “primeiro” sentido de uma expressão. Muito daquilo que falamos é mera repetição do que ouvimos – e, por vezes, absorvemos apenas o seu sentido geral ou o seu uso pragmático. “Não quero nem ver a cara de fulano” significa preocupação com a reação desse fulano, independentemente de estarmos aptos a “enxergar” no sentido literal.
Somos muito menos literais do que imaginamos. Quantas vezes não usamos, por exemplo, a expressão “samba do crioulo doido” diante de algo confuso ou sem nexo, mesmo sem saber o que ela significa literalmente? Em termos de comunicação, vale o sentido da expressão e, sobretudo, o seu uso. É claro que é interessante saber a sua origem, mas desnecessário para se comunicar.
Ao que tudo indica, teria sido uma criação do escritor Sérgio Porto (1923-1968), mais conhecido pelo pseudônimo Stanislaw Ponte Preta. O fato é que, em 1966, na época da ditadura militar, ele usou essa expressão como título de um samba que ironizava uma exigência do regime. Como as escolas de samba eram obrigadas a retratar em seus enredos somente fatos históricos, ele criou um samba em que misturava os acontecimentos e os personagens da história do Brasil. Vejamos:
“Este é o samba do Crioulo doido/ A história de um compositor que/ Durante muitos anos obedeceu ao regulamento/ E só fez samba sobre a história do Brasil// E tome de inconfidência, abolição, proclamação, Chica da Silva/ E o coitado do Crioulo tendo que aprender/ Tudo isto para o enredo da escola/ Até que no ano passado escolheram um tema complicado/ A atual conjuntura/ Aí o crioulo endoidou de vez e saiu este samba//Foi em Diamantina onde nasceu J.K./ Que a princesa Leopoldina resolveu se casar/
Mas Chica da Silva tinha outros pretendentes /E obrigou a princesa a se casar com Tiradentes// Laiá, laiá, laiá, o bode que deu vou te contar/ Laiá, laiá, laiá, o bode que deu vou te contar// Joaquim José, que também é da Silva Xavier/ Queria ser dono do mundo
E se elegeu Pedro Segundo/ Das estradas de Minas, seguiu pra São Paulo/ E falou com Anchieta// O vigário dos índios aliou-se a Dom Pedro/ Acabou com a falseta/ Da união deles dois ficou resolvida a questão/ E foi proclamada a escravidão/ E foi proclamada a escravidão// Assim se conta essa história/ Que é dos dois a maior glória/ A Leopoldina virou trem/ E Dom Pedro é uma estação também// Oh-oh-oh, o trem tá atrasado ou já passou?/ Oh-oh-oh, o trem tá atrasado ou já passou?”.
Como se vê, desde a sua origem, a expressão surgiu numa sátira ao regime militar, que censurava letras de canções e interferia até mesmo na criatividade dos sambistas. Mesmo sem conhecerem essa história ou a letra da canção, os falantes vão transmitindo a expressão, que passou a significar confusão, falta de nexo. Esse é um caso interessante, pois, de uns tempos para cá, a expressão passou a ser vista como racista, por supostamente reforçar a ideia de que pessoas negras são desordeiras ou promotoras de confusão. Não parece ser o que ela evoca. Argumenta-se, então, que “crioulo” é o termo racista. De fato, o termo ganhou sentido pejorativo e já não é usado em referência às pessoas negras, mas, dentro da expressão, que é percebida como um todo, ela soa como o “ver a cara” dito por um cego.
De todo modo, como os movimentos antirracistas têm recomendado com insistência evitar o uso da expressão, é possível que ela caia em desuso, ainda que permaneça entre nós o próprio samba, gravado pelos Demônios da Garoa.
Veja-se também o caso da expressão “país sério”, sempre usada no negativo: isso ou aquilo não aconteceria se este fosse um “país sério”. Essa expressão também tem sua história, que remonta à chamada “guerra da lagosta”, quando o Brasil e a França, nos primeiros anos da década de 1960, tiveram um incidente diplomático relativo à pesca do crustáceo. Na ocasião, o presidente francês, Charles de Gaulle, teria dito que “o Brasil não é um país sério”, declaração logo assumida pelo diplomata Carlos Alves de Souza Filho. De Gaulle garantiu que jamais diria isso do Brasil, mas os brasileiros parecem ter gostado muito da tirada espirituosa, tanto que – da direita à esquerda do espectro político – estão sempre a entoá-la.
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O fato é que a expressão passou a ser largamente empregada no Brasil, em geral quando se reivindica mais austeridade no cumprimento de leis. Se este fosse um país sério, não haveria isto ou aquilo, fulano estaria preso, beltrano seria cassado; um país sério não controla o preço do petróleo etc. etc. etc. Nunca saberemos qual é, realmente, o “país sério”, em que tudo corre às mil maravilhas.
Mais uma vez, não se trata de sentido literal, mas apenas de uma expressão de lamento por não ser feito aquilo que achamos certo em relação aos temas nacionais. Acionamos vagamente a ilusão de que em outro lugar tudo seria diferente. Há quem condene o uso dessa expressão por, supostamente, reforçar certo “complexo de vira-lata” do povo brasileiro, que não supera seu sentimento de inferioridade.
Quem achar oportuno evitar a expressão, para assim melhorar a autoestima nacional, que o faça, se é que o movimento seja esse, não o inverso. As palavras mudam a realidade ou a realidade muda as palavras? Talvez um e outro movimento se completem.
Nas expressões populares, porém, ouvidas e repetidas, o sentido literal parece não ser o mais importante. A quem chegou até aqui, os votos de um excelente 2025, repleto de alegrias e realizações.