Um fantasma de 86 anos assombra os passos de Volodimir Zelenski em Munique, a bela capital da Baviera, no momento crucial para a guerra que tornou um desconhecido comediante tornado presidente admirado por seus aliados como um Winston Churchill do século 21.
Exageros à parte, os paralelos históricos sufocam o encontro de Zelenski com a delegação enviada por Donald Trump para a cidade alemã, onde todos estarão na Conferência de Segurança de Munique, ela mesma palco de lances vitais na linha do tempo do atual conflito no Leste Europeu.
Começando pelo passado, a 950 metros a pé do hotel que sedia a conferência desde 1963, o elegante Bayerisch Hof (corte bávara, em alemão), fica um dos poucos prédios da era nazista ainda em pé em Munique, o Führerbau —literalmente, o prédio do líder, no caso Adolf Hitler.
Hoje o edifício sedia uma universidade de música, mas à época era o predileto de reuniões do ditador na cidade onde mostrou-se ao mundo pela primeira vez, no golpe nazista fracassado de 1923. Em 30 de setembro de 1938, história foi feita nele.
Tendo chegado ao poder em 1933 denunciando o que chamava de traição dos políticos alemães conta o Exército e o povo no fim da Primeira Guerra Mundial (1914-18), Hitler rearmou a Alemanha por baixo do radar do draconiano Tratado de Versalhes e começou a dar seus passos expansionistas.
Em março de 1938, anexou a Áustria sem tiros. Depois, voltou os olhos para os Sudetos, regiões de alemães étnicos na Tchecoslováquia. A negociação com as potências europeias de ponta, Reino Unido e França, levaram a Munique.
Três dias antes da reunião final, o premiê britânico, Neville Chamberlain, disse: “O quão horrível, fantástico, incrível é que devamos estar cavando trincheiras e experimentando máscaras de gás aqui por causa de uma briga em um país distante entre pessoas das quais nada sabemos”.
Famoso pelo lema “paz no nosso tempo”, o primeiro-ministro estava disposto a evitar a volta do trauma da Primeira Guerra, que ceifou uma geração de jovens europeus: estima-se que cerca de 80% dos 10 milhões de militares mortos tinha de 18 a 25 anos.
Hitler, ao lado do aliado italiano Benito Mussolini, dobrou Chamberlain e o premiê francês, Édouard Daladier. A paz foi alcançada às expensas dos tchecos, que nunca foram chamados à mesa. Em Londres, a “traição de Munique” foi denunciada pelo homem que sucederia a Chamberlain e viraria o ícone da resistência ao nazifascismo, Churchill.
Hitler foi em frente e, após assegurar um pacto com a rival União Soviética para não ter de enfrentar duas frentes, erro fatal de 1914 para Berlim, dividiu a Polônia com Josef Stálin em 1939. Pouco antes de assumir o poder, Churchill disse em 1940, citando os apaziguadores de 1938: “Todos esperam que, se você alimenta o crocodilo o suficiente, o crocodilo vai comê-lo por último.”
O resto é história, que os críticos de Vladimir Putin gostam de evocar para tentar equivaler o russo ao nazista, uma ofensa capital em Moscou: foram os soviéticos que deram mais sangue na vitória sobre Hitler, com 27 milhões de 70 milhões de mortos.
De seu lado, o presidente russo busca jogar a culpa pela Segunda Guerra em Munique, tentando pintar o pacto nazi-soviético como uma mera reação defensiva. Não era: o acordo partiu o Leste Europeu entre eles secretamente. Putin também evoca o neonazismo de setores militares ucranianos sempre que pode.
Na leitura dos detratores do Kremlin, Trump é um Chamberlain com armas nucleares e irá apenas informar Zelenski acerca do que pretende negociar com Putin: a partilha de ao menos 20% da Ucrânia já nas mãos russas.
Por evidente, há diferenças, a começar pelo fato de que é Zelenski, e não Putin, quem está em Munique. Segundo, não se sabe ainda como a negociação com o Kremlin irá prosseguir: o presidente americano é um poço de imprevisibilidade. Terceiro, a reação europeia ainda precisa ser medida, embora Kiev não conte muito com isso.
A história também joga suas sombras na conferência em si. Em 2007, foi lá que o então jovem e quase pró-Ocidente Putin fez o famoso discurso em que denunciou a expansão da aliança militar ocidental a leste após a Guerra Fria, englobando ex-satélites e até ex-repúblicas soviéticas, de resto um fato, e prometeu reagir.
No ano seguinte, a Otan convidou a Geórgia e a Ucrânia, essa a segunda mais importante república da antiga União Soviética. O resultado foi a rápida guerra que impediu Tblisi de aderir ao Ocidente até hoje e os eventos que culminaram na Guerra da Ucrânia.
Foi também na conferência, cinco dias antes da invasão de 2022, que o mesmo Zelenski alertou para o conflito iminente e deu uma mãozinha ao discurso de Putin ao defender que Kiev deveria ter ficado com as armas nucleares que deu à Rússia nos anos 1990.