“Eu sei como são estes julgamentos”, diz uma desesperançosa Paula, vítima de assédio sexual, para sua advogada de defesa, enquanto confidencia detalhes de seu passado que teme virem à tona caso leve adiante a denúncia. Vídeos curtidos, consumo de pornografia, até o gosto de caráter duvidoso —tudo faz parte desse pacote do medo sobre a devassa da vida íntima.
O absurdo das situações elencadas dá o contorno hilário para o assunto sensível do novo vídeo do Porta dos Fundos, que vai ao ar neste sábado —a desqualificação da vítima por seu passado em audiências judiciais e investigações, considerada inconstitucional e proibida no Brasil pelo Supremo Tribunal Federal, o STF, em decisão unânime, no ano passado.
Divulgada no Dia Internacional da Mulher, a esquete “Antecedentes” abre a campanha de conscientização sobre direitos femininos criada em uma parceria do grupo de humor com o STF. É protagonizada pelas atrizes Clarice Falcão e Débora Lamm, que faz sua primeira participação no canal, e destaca outras mulheres na equipe —Bárbara Duvivier, diretora artística do Porta, assina o roteiro com Gabriela Niskier e Kika Hamaoui; Gigi Siares, a direção.
“Os textos pretendem cumprir a difícil missão de divulgar as recentes decisões do STF no combate à violência de gênero de maneira leve e acessível para todos, sem deixar de divertir e entreter o espectador”, diz Duvivier, que investiu no didatismo para criar a identificação do público com questões corriqueiras como a dificuldade de fazer denúncias de violência sexual e a superação do sentimento de culpa das mulheres.
O segundo vídeo da campanha, “Recadinho”, estreia na segunda (10) e também dá conta de uma decisão recente do STF. O roteiro de Kika Hamaoui e Gustavo Vilela faz referência à ideia da legítima defesa da honra, que por anos foi usada como justificativa de crimes de feminicídio e agressão contra mulheres.
Em 2021, o tribunal sepultou de vez a tese, reconhecendo sua inconstitucionalidade e a impossibilidade de seu uso em juízo. Na esquete de humor, a tese é mais uma vez evocada e ridicularizada pela figura de uma apresentadora, que se dirige a “macholindos” em uma linguagem infantilizada. “Se fizer coisa errada com a parceira, vocês vão ficar de castigo”, ensina a personagem Juju, interpretada por Bella Carneiro.
A parceria com o Porta dos Fundos é parte de uma estratégia recente do STF, intensificada sob a presidência do ministro Luís Roberto Barroso, de aproximar as decisões do Judiciário e a Constituição da população, com uma comunicação simples e acessível.
Neste sentido, os vídeos do Porta dos Fundos têm o apelo e o alcance ideal para popularizar conteúdos estratégicos —o canal tem hoje, no YouTube, 18,5 milhões de inscritos, e um post tem, em média, 585 mil visualizações, podendo chegar à marca de milhões. Temas de interesse público têm grande engajamento, como foi o caso do episódio “TDAH”, sobre a banalização do diagnóstico médico, lançado há duas semanas e já com mais de 1 milhão de visualizações.
“Estas decisões citadas nos vídeos já estão mudando a vida de muitas mulheres. É importante comunicar esses entendimentos assim, de maneira ilustrativa e popular. Estamos certos de que esse conteúdo vai levar muita gente a refletir sobre a importância de proteger as mulheres da violência física, processual e outras formas de abuso”, diz Barroso.
Não é a primeira vez que o Porta usa o humor como ferramenta para provocar reflexões sobre a questão de gênero. No Dia da Mulher de 2024, o canal publicou o compilado “Elas que Lutem”, com uma série de vídeos publicados nos últimos anos sobre temas como o conceito de “mansplaining”, as desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho, entre outros.
O debate proposto ao público encontra eco internamente. Há alguns anos, o hub de entretenimento vem aprimorando suas políticas de inclusão, ampliando a representatividade de mulheres na equipe e no próprio conteúdo.
“Atualmente, a equipe do Porta é composta por 70% de mulheres. Entre as lideranças, o percentual sobe para 80%. Esse movimento se reflete no nosso conteúdo, que ampliou sensivelmente o número de esquetes protagonizadas por mulheres e hoje tem uma direção criativa feminina”, afirma Joema Martins, diretora de estratégias do Porta dos Fundos.
O aquecimento do debate social e da ideia de um “constitucionalismo feminista”, que reivindica uma releitura completa do sistema a partir da perspectiva de gênero, também tem reflexos no Judiciário. Se por um lado, historicamente, muitos julgamentos e decisões reproduziram o machismo da sociedade, este cenário estaria mudando, de acordo com Cristina Telles, à frente da Ouvidora da Mulher do STF.
“Nos últimos dez anos, a temática de gênero se tornou muito mais discutida no país. Houve muitos avanços e, também, reação a eles. Temos normas melhores, produção acadêmica e jurisprudencial mais farta, e uma sociedade mais exigente em relação à matéria, ainda que, em alguns campos, como o dos direitos reprodutivos, a discussão siga difícil”, diz Cristina. “A maioria das pessoas não consegue acompanhar o que é decidido. Mas há decisões que merecem um esforço de comunicação maior.”
A Ouvidoria do Tribunal, criada em dezembro de 2023 na gestão de Barroso, é uma novidade. Nela, a subunidade Ouvidoria da Mulher oferece atendimento especializado para as demandas relacionadas aos direitos femininos, dando acolhimento e orientação às mulheres que procuram o Tribunal.
Desde 2023, também é obrigatória a aplicação pelo Poder Judiciário nacional das diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, estabelecido pelo Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, em 2021. De acordo com o protocolo, os processos judiciais devem ser analisados e conduzidos a partir de um olhar que busque, ativamente, identificar a eventual existência de elementos discriminatórios de gênero para, então, enfrentá-los conforme exige a Constituição.
“O constitucionalismo feminista nos faz entender, entre outras coisas, que a garantia de igualdade de direitos entre homens e mulheres não basta. É uma garantia relevantíssima, mas que precisa ser densificada e complementada por uma revisão crítica de todo nosso sistema constitucional a partir do feminismo”, conclui Cristina.